A educação pelo vírus

Inútil discutir se o mundo sairá melhor ou pior deste momento asfixiante. Não seria mais inteligente buscar as decisões que podem nos levar sãos e salvos ao final desta jornada?

Foto: Agência Envolverde

Texto publicado em 21/06/2020

No livro A educação pela pedra, de 1966, João Cabral de Melo Neto chegava ao momento maior de seu aprendizado como poeta. Após duas décadas de intenso trabalho, havia aprendido a ser conciso, enxuto, lapidar, escrevendo com o máximo de precisão.

Também nós, no meio desta pandemia, podemos dizer que estamos escrevendo uma espécie de livro com o título A educação pelo vírus.

Ao longo dos últimos meses, já aprendemos muitas coisas com o vírus Covid-19.

E ainda temos muito a aprender.

Duas lições

Uma primeira e importantíssima lição remete ao papel das lideranças políticas.

Nesta autêntica guerra que atinge e envolve a todos, como afirmou o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, seria necessário contar com a voz firme e coerente de pessoas que orientassem a população, e que ajudassem sobretudo os que estão na frente de batalha a realizarem as tarefas essenciais para a sociedade.

Governantes discutindo entre si, avaliações contraditórias, indicações confusas, soluções mágicas e irrealistas, gritos em lugar de raciocínios, desinformação, números manipulados etc., tudo isso dá mais força ao inimigo comum, o vírus.

Outra lição refere-se ao mundo da educação propriamente dito, às escolas, aos professores, aos alunos e seus familiares.

Desde o princípio, seria necessário compreender com clareza de que modo e quando as escolas voltarão à presencialidade.

De que modo?

Havendo segurança absoluta.                                                                                

Quando?

Quando todos os demais setores sociais já tiverem regressado à normalidade, e, mesmo assim, adotando as medidas de segurança que ainda teremos de observar durante bastante tempo.

A prioridade é a vida dos estudantes, dos educadores e do pessoal de apoio pedagógico e administrativo. No cotidiano das escolas, o encontro é próximo, numeroso, constante. Aliás, o encontro é aqui um elemento fundamental e incontornável. A interação, a proximidade, a linguagem não verbal são intrínsecas ao processo de ensino-aprendizagem.

Sem dúvida, todos têm uma vontade imensa de regressar.

E por causa dessa vontade de regressar muito antes do que seria prudente, alguns colocam a carroça na frente dos bois, elaborando protocolos sanitários minuciosos, que incluem redução do número de alunos em turma e distanciamento físico entre eles, suspensão de atividades coletivas, uso obrigatório das máscaras individuais, uso frequente de água, sabão e álcool gel, higienização completa dos ambientes, tapetes para limpeza dos calçados, medição diária de temperatura de estudantes, educadores e servidores, desinfecção diária dos ônibus escolares, rotas predeterminadas para as salas de aula, para o pátio, para o refeitório, para a biblioteca, para a secretaria, túneis de acesso com pulverização… e tudo isso ainda será pouco.

Tudo isso, de fato, é pouco, inadequado e ineficaz.

Basta perguntar aos professores, aos pais e aos próprios estudantes por quê.

Acesso e qualidade

Enquanto as portas das escolas estiverem fechadas, e assim devem permanecer até o surgimento da vacina ou de um tratamento médico provado e comprovado, precisamos defender o direito das crianças, dos adolescentes e jovens à educação.

Os dois critérios norteadores para garantir esse direito são o acesso e a qualidade.

Quanto ao primeiro item, as diversas iniciativas voltadas para o ensino remoto revelam de modo inequívoco o que desde sempre sabíamos: a profunda desigualdade do nosso sistema educacional.

Entre o tudo e o nada, vamos dos colégios particulares que oferecem inúmeras oportunidades em suas plataformas digitais para alunos que dispõem de amplos recursos tecnológicos, às escolas públicas, cujos estudantes, em suas casas, não têm conexão banda larga, não têm dispositivos, sem falar de outras carências estruturais.

Quanto ao item qualidade, entram em cena outros fatores. Mesmo nas instituições particulares a formação docente para o ensino remoto deixa a desejar. A abnegação e o esforço dos professores são inegáveis, mas ainda constatamos uma boa dose de improvisação.

E não basta, simplesmente, tentar transpor para o ambiente familiar dos estudantes o que acontecia no ambiente escolar. Essa transposição, mediada pela tecnologia, carrega evidentes limitações, e tudo fica ainda mais difícil se houver insistência em aulas expositivas. Se a exposição em forma de monólogo já é cansativa presencialmente, que dirá virtualmente.

A qualidade educacional ficará seriamente prejudicada se continuarmos presos ao conteudismo. Já sabíamos disso antes. Repetir esse erro em meio à pandemia, ao isolamento físico, tendo como pano de fundo a ausência de todo o contexto material e existencial de uma escola… repetir esse erro afasta ainda mais do conhecimento os alunos já tão distantes.

Uma terceira lição

Muitas coisas ainda devemos aprender com esse vírus. Uma terceira lição diz respeito justamente à nossa capacidade de vencermos o sofrimento que o vírus provoca em nós, de continuarmos lúcidos, de fortalecermos a esperança, antídoto para a tristeza e o desânimo.

É meio inútil, a meu ver, a discussão sobre se o mundo sairá melhor ou pior desse tempo desértico.

Talvez a pergunta mais acertada seja esta: quais as melhores decisões a tomar hoje para sairmos vivos e ativos deste ano de 2020?

Olhando de novo para o campo educacional, acreditávamos há pouco tempo que voltaríamos às aulas presenciais em maio… em junho… Há quem diga agora que voltaremos em julho… em agosto.

Não seria mais inteligente observar as tomadas de decisão das autoridades e gestores educacionais de outros países?

O que devemos aprender com as escolas europeias que retomaram suas atividades presenciais e em pouco tempo precisaram voltar atrás?

E se tivéssemos a coragem de optar por um ensino remoto que deixasse um pouco de lado a overdose digital, privilegiando a leitura como eixo de todo o aprendizado (conteúdo, sim, mas sobretudo as competências preconizadas pela BNCC, a Base Nacional Comum Curricular), aproveitando a grande oportunidade de tornar nossos alunos (e professores) leitores da melhor qualidade?

 Gabriel Perissé

Doutor em Filosofia da Educação (USP), autor de vários livros, entre eles Uma pedagogia do corpo, pela Editora Autêntica.

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Curtas

  •   Teve início em 29/06  a websérie “Caminhos do Devir – Volta às aulas pós-Covid-19”, com o debate sobre “Como aplicar a gestão de crises para planejar a volta às aulas de forma segura”. Os educadores e sócio-fundadores da Devir Projetos Educacionais, Luis Laurelli e Eloisa Ponzio, além do consultor Flávio Schmidt, consultor em gestão de crises do Grupo Trama Comunicação, analisaram as estratégias, cuidados e precauções para garantir uma volta às aulas que possa assegurar a saúde de professores e crianças e a tranquilidade das famílias. A conversa teve a mediação do editor do Trem das Letras, Rubem Barros. O encontro marcou também o lançamento do e-book “A Covid-19 nas escolas e o caminho para a retomada do presencial”, disponível para download, que pontua sobre os passos da retomada.  Texto publicado em 25/06/2020

  • O ano de 2020 marca o final do mandato de 12 dos 24 conselheiros do CNE, o Conselho Nacional de Educação. A primeira lista com sugestões de substitutos, deixada pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, provavelmente na correria a caminho do aeroporto, era composta principalmente por olavistas. Gerou resistência até dentro do próprio governo Bolsonaro. Diante do freio, puxado pelos militares, o ministro interino, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, está fazendo uma nova rodada de discussão para a escolha de outros nomes.  A Casa Civil será um dos principais interlocutores para definir a lista final. Se o padrão das escolhas continuar o mesmo de outras áreas, é provável que as escolas cívico-militares ganhem fôlego inaudito. Texto publicado em 25/06/2020

  • Além do Fundeb, é preciso ficar de olho na possível votação da Medida Provisória 934, que estabelece normas de excepcionalidade para a educação básica e superior em 2020. O relatório da deputada Luísa Canziani (PTB/PR) manteve entre as emendas que devem ir a plenário a liberação da obrigatoriedade do cumprimento das 800 horas para a educação infantil e de oferta da educação a distância na mesma etapa. A relatora deixa a decisão nas mãos dos gestores municipais. Além de contrariar todas as evidências científicas e pedagógicas que enfatizam os prejuízos da educação a distância para as crianças de até 5 anos, a medida pode significar a abertura da porteira para os grupos privados que atuam no negócio da educação a distância. Com as redes de ensino sufocadas pela falta de dinheiro, com aumento das despesas por causa da pandemia e queda na arrecadação de impostos de até 24%, impactando diretamente no Fundeb, principal fonte de recursos para a educação básica pública, a EAD pode ser vista por muitos como solução milagrosa. Mas será apenas um instrumento para cumprir a obrigação legal de oferta de ensino. E inadequado, no caso da educação infantil. É preciso ver o que falará mais alto, se o rigor burocrático ou o bom senso. Texto publicado em 25/06/2020

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