Um vazio ocupado por imagens

O professor substituto, de Sébastien Marnier, mostra a dificuldade de ocupar um lugar que foi de outro, na sala de aula ou no mundo

Fotos: Avenue B Production/Mpoussin

Quando não há interlocução com professores ou adultos, a visão dos adolescentes pode se tornar vaga ou ausente

Ocupar um lugar deixado por alguém, cumprir uma função ou desempenhar um papel para o qual já houve um modo consagrado de fazê-lo, determinado pelo antigo ocupante e assimilado por aqueles que com ele conviviam, não é uma tarefa fácil. Exemplos clássicos desse mal-estar são o das mulheres que se tornam madrastas (neste caso, começando pelo qualificativo) e o dos professores que substituem outros docentes em instituições marcadas pelo formalismo.

Agora imagine só, nesse segundo caso, se a substituição for de um professor que, enquanto seus alunos faziam uma prova, se atirou pela janela da classe, quebrando o silêncio de até então. Essa é a cena inicial de O professor substituto (L´heure de la sortie, França, 2018), direção de Sébastien Marnier, também um dos responsáveis pela adaptação do romance de mesmo nome de Christophe Dufossé.

É o que enfrenta o personagem de Pierre Hoffman (Laurent Lafitte) quando vem dar aulas no Colégio Saint Joseph, uma escola francesa tradicional e de grande prestígio acadêmico. Seu antecessor está em coma, não há perspectiva de voltar e ele assume então os alunos – apenas 12 – do terceiro ano do ensino médio, uma classe composta apenas por estudantes superdotados, de alto desempenho escolar. Exatamente a turma que presenciou o episódio que ainda perturba a todos.

É da difícil relação entre Pierre e seus alunos que trata o filme de Marnier à primeira vista. Mas ele parece ser também a alegoria das relações atuais entre adolescentes e mundo adulto em meio a um universo que parece ameaçador para os jovens e incongruente ou pouco passível de mudanças para os mais velhos.

A própria classe com que Pierre tem de lidar é, por si só, um símbolo das relações entre os jovens que têm acesso a uma educação muito seletiva, que os isola de outros adolescentes, criando uma sensação de superioridade e refinamento intelectual que põe em dúvida a possibilidade de outros os entenderem, a começar pelo substituto, cuja capacidade de lidar com eles é posta em xeque.

Pierre percebe isso logo ao propor as primeiras atividades, todas elas já superadas há tempos pelos alunos. Quando responde ao questionamento de um aluno sobre o porquê de um professor de 40 anos ainda ser substituto, ele menciona que está fazendo o doutorado, um estudo sobre Franz Kafka, e a tese toma tempo, por isso a opção de ser substituto. Acostumado com estudantes de nível cultural mais baixo, surpreende-se ao saber que ali praticamente todos conhecem o escritor tcheco.

A menção a Kafka e seu universo não é gratuita. Evoca, como imagens que perturbam Pierre a partir de então, a sensação de estar vivendo uma relação absurda e enigmática com jovens que não o respeitam, cultivam estranhas relações entre si e têm o beneplácito da direção e de outros professores. Tiranetes com os quais os adultos não podem ou não conseguem lidar. São o fruto da seleção por meio dos resultados cognitivos, símbolo de uma época em que a escola já não é mais vista como um lugar capaz de fazer com que, ao menos em seu espaço, sejam todos iguais. Não como indivíduos, que têm gostos e desejos particulares, mas como sujeitos de mesmo direito à futura cidadania.

A angústia de Pierre é um pouco a angústia contemporânea, seja da escola ou da sociedade. Os elos intergeracionais se perderam. As soluções anteriores, baseadas em hierarquias e submissão voluntária (ou não), não funcionam mais. Os jovens desfrutam de um poder para o qual não estão preparados. A crise da escola torna-se assim uma crise do mundo contemporâneo, num cenário em que o adulto que tenta fazer a ponte entre o que crê ser necessário para educar e seus pares encontra apenas educadores resignados ou indiferentes à situação.

Enquanto Pierre, como um voyeur, passa a buscar sentido numa miríade de imagens – de vídeos gravados pelos alunos, da observação das atividades deles fora da escola, de suas alucinações e signos que aparecem à sua frente, como apocalípticos animais em fuga – os meninos orquestram um grand finale para sua sinfonia. Ele se assemelha bastante ao mundo atual. Para a estupefação inerte de Pierre.

Ficha técnica
O professor substituto (L´heure de la sortie), França, 2018, 104 minutos.
Direção: Sébastien Marnier.  Com Laurent Lafitte, Emmanuelle Bercot, Victor Bonnel, Adèle Castillon, Leopold Buchsbaum e Luana Bajrami
Lançamento em circuito no Brasil: 25 de julho.

 

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Curtas

  •   Teve início em 29/06  a websérie “Caminhos do Devir – Volta às aulas pós-Covid-19”, com o debate sobre “Como aplicar a gestão de crises para planejar a volta às aulas de forma segura”. Os educadores e sócio-fundadores da Devir Projetos Educacionais, Luis Laurelli e Eloisa Ponzio, além do consultor Flávio Schmidt, consultor em gestão de crises do Grupo Trama Comunicação, analisaram as estratégias, cuidados e precauções para garantir uma volta às aulas que possa assegurar a saúde de professores e crianças e a tranquilidade das famílias. A conversa teve a mediação do editor do Trem das Letras, Rubem Barros. O encontro marcou também o lançamento do e-book “A Covid-19 nas escolas e o caminho para a retomada do presencial”, disponível para download, que pontua sobre os passos da retomada.  Texto publicado em 25/06/2020

  • O ano de 2020 marca o final do mandato de 12 dos 24 conselheiros do CNE, o Conselho Nacional de Educação. A primeira lista com sugestões de substitutos, deixada pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, provavelmente na correria a caminho do aeroporto, era composta principalmente por olavistas. Gerou resistência até dentro do próprio governo Bolsonaro. Diante do freio, puxado pelos militares, o ministro interino, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, está fazendo uma nova rodada de discussão para a escolha de outros nomes.  A Casa Civil será um dos principais interlocutores para definir a lista final. Se o padrão das escolhas continuar o mesmo de outras áreas, é provável que as escolas cívico-militares ganhem fôlego inaudito. Texto publicado em 25/06/2020

  • Além do Fundeb, é preciso ficar de olho na possível votação da Medida Provisória 934, que estabelece normas de excepcionalidade para a educação básica e superior em 2020. O relatório da deputada Luísa Canziani (PTB/PR) manteve entre as emendas que devem ir a plenário a liberação da obrigatoriedade do cumprimento das 800 horas para a educação infantil e de oferta da educação a distância na mesma etapa. A relatora deixa a decisão nas mãos dos gestores municipais. Além de contrariar todas as evidências científicas e pedagógicas que enfatizam os prejuízos da educação a distância para as crianças de até 5 anos, a medida pode significar a abertura da porteira para os grupos privados que atuam no negócio da educação a distância. Com as redes de ensino sufocadas pela falta de dinheiro, com aumento das despesas por causa da pandemia e queda na arrecadação de impostos de até 24%, impactando diretamente no Fundeb, principal fonte de recursos para a educação básica pública, a EAD pode ser vista por muitos como solução milagrosa. Mas será apenas um instrumento para cumprir a obrigação legal de oferta de ensino. E inadequado, no caso da educação infantil. É preciso ver o que falará mais alto, se o rigor burocrático ou o bom senso. Texto publicado em 25/06/2020

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