Contardo Calligaris: o professor faz a diferença

“A única coisa que realmente importa na sala de aula é a qualidade do professor. O resto é balela. Os lugares e os momentos em que aprendi são aqueles em que encontrei como professores pessoas fora do comum.” Entrevista concedida pelo psicanalista há 13 anos

Entrevista original publicada na revista Educação (www.revistaeducacao.com.br)
Foto: Gustavo Morita

Entrevista (re)postada, com acréscimos, em 30/03/2021

O site Trem das Letras está inativo desde o final de 2020, mas a notícia da morte de Contardo Calligaris me levou a, ao menos, republicar uma entrevista que fiz com ele alguns atrás. Àqueles que acompanhavam o Trem das Letras, comunico que estou estudando seu retorno, talvez em novas bases. E peço desculpas pelo silêncio prolongado. 

Em 2007 ou 2008, não me lembro exatamente quando, fui recebido por Contardo Calligaris em seu consultório, também não me lembro exatamente onde, mas creio que na rua Caconde, nos Jardins, em São Paulo. No início de 2007 eu havia assumido a edição da revista Educação e buscava olhares sobre o tema mais abertos do que aqueles da estrita especialidade pedagógica. Calligaris pareceu então um entrevistado obrigatório, dado o seu olhar permanente para assuntos que deveriam estar na órbita dos educadores, como liberdade, desejo, direito à individualidade, adolescência e seu sempre renovado convite à experiência como aspecto essencial da vida. 

Acessível e cordato – mas não muito dado a intimidades, pois era um milanês, não um napolitano! – me recebeu para um bate-papo que rendeu um tanto mais do que o que segue abaixo. Lembro de ter guardado certos trechos para uma grande matéria que estava preparando sobre, ora vejam, homeschooling. Nos recônditos de minhas memórias de computador, esses trechos certamente ainda estão guardados, porém difíceis de serem localizados neste momento. Mas me lembro perfeitamente da dúvida momentânea do  entrevistado com relação ao tema e da essência de sua resposta. Calligaris tinha enorme ojeriza à intervenção do Estado nas escolhas de vida dos indivíduos, ao cerceamento de sua liberdade, o que incluía a intervenção na forma de se educar os filhos; por outro lado, era de um republicanismo ferrenho, no sentido de que deveríamos ter assegurado universalmente o direito à condição de cidadania. No frigir dos ovos, condenou o homeschooling, talvez principalmente pelo fato de ele representar uma escolha não do indivíduo, mas de famílias que na maior parte das vezes não querem propiciar aos filhos o direito do convívio com a diferença, buscando encarcerá-los em suas crenças como forma de evitar o dissenso, um alimento vital para que formemos nossas identidades. 

Do ponto de vista individual, essa resposta significou para mim um grande alívio: ela me ajudava a conjugar dois sentimentos ou convicções que me deixavam com a sensação de contradição: a defesa de uma liberdade quase anárquica, liberta de amarras institucionais, e a crença numa vida pública que repudiasse privilégios de qualquer ordem. Ou seja, uma espécie de anarco-republicanismo. A eventual contradição vinha temperada com um quê ainda mais sedutor, justamente por passar longe de qualquer certeza absoluta.  

A entrevista…

Colunista do jornal Folha de S.Paulo desde 1999, no qual escreve todas as quintas-feiras na Ilustrada , o psicanalista e doutor em psicologia clínica Contardo Calligaris nasceu na Itália e vive hoje entre São Paulo e Nova York. Foi professor de estudos culturais da New School, em Nova York, e professor convidado de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley.

Atento aos fenômenos relativos à cultura e com uma formação universalista, Calligaris faz um contraponto a idéias correntes no mundo educacional, como a cultuada parceria escola-família e a valorização da tecnologia. Leia, a seguir, na entrevista concedida ao editor Rubem Barros, como o autor de Adolescência (Publifolha, 1999) e Cartas a um jovem terapeuta (Campus, 2007) analisa algumas das questões centrais da educação e das relações entre a sociedade e os jovens.

Em coluna recente sobre as restrições aos viajantes mundo afora, o senhor diz que “a mentira, num mundo opressivo, é uma forma aceitável de resistência”. Isso vale para a educação?

Não necessariamente a mentira, mas a possibilidade de manter áreas de segredo é crucial para qualquer jovem, adolescente ou criança. Não significa que isso tenha de ser criado ou facilitado pelos pais, mas essa possibilidade é crucial. Às vezes, implica também mentiras. Isso se afasta muito de ideais, em especial norte-americanos, em que a questão da transparência e da sinceridade é um valor central há mais de dois séculos, e mentir é um pecado capital.

O senhor concorda com isso?

Salvo nas situações em que a mentira obedece a um julgamento moral, no foro íntimo de um sujeito, com o qual podemos ou não concordar. Esse julgamento moral é mais importante do que as regras estabelecidas. Há uma série de situações em que faz parte da nossa autonomia poder achar que algo pode ser ilegal e justo, ou ilegal e injusto. Normalmente se presume que o que nos parece justo é mais importante do que aquilo que é legal. Isso faz com que, numa série de situações, condutas que podem parecer imorais sejam perfeitamente morais.

Da metade do século passado para cá, a escola deixou de ser tão controladora, ou apenas desenvolveu novos meios de controle?

Uma das coisas opressivas, e hoje mais valorizadas em pedagogia, é a aliança constante entre pais e mestres que, em princípio, e no melhor dos casos, estariam numa espécie de aliança constante, com troca de orientações, encontros regulares, criando uma espécie de time que se ocupa global e coletivamente do devir da criança e do adolescente. Isso é bastante opressivo. Uma separação mais clara entre a casa e a escola deixava margens maiores de liberdade a esses sujeitos.

Por quê?

A possibilidade de poder ser uma pessoa diferente em casa e na escola, de poder estar deprimido em casa e ótimo na escola, ou vice-versa, é suprimida com isso. Acaba sendo uma preocupação que surge em casa e chega aos ouvidos da escola, ou vice-versa. Em um monte de casos essa comunicação é ótima, mas cria a sensação para o adolescente de que ele está vivendo num só mundo. E os adultos não vivem num mundo só. Nossos filhos não são chamados ao nosso trabalho para conversar com nosso chefe. São dois mundos.

Congelado em sua moratória – a adolescência, como o senhor a classifica -, o jovem enfrenta no ensino médio um período conturbado de sua vida escolar e pessoal. Para muitos, o que se estuda não faz sentido. Como se enfrenta esse problema?

Há um lado relativo ao programa, sobre o qual não tenho muito a dizer, pois não conheço bem o programa escolar brasileiro. Mas não me convenço de que essa seja a questão central, nem mesmo a adaptação do programa escolar às mudanças [do mundo contemporâneo], que é de uma lentidão extraordinária. Mas tenho uma opinião quanto ao interesse dos alunos: sempre achei que a única coisa que realmente importa na sala de aula é a qualidade do professor. O resto é balela. Que tenha computador, vídeo, que esteja chovendo, que tenha ar-condicionado, 20 alunos ou 35… Quando penso na minha história escolar, os lugares e os momentos em que aprendi são momentos em que encontrei como professores pessoas fora do comum.

A idéia do mestre…

Não do mestre como alguém que vai me administrar a verdade em partículas, mas de uma figura que seduz, que leva consigo, esse é o sentido etimológico de seduzir. Eu não tinha nenhuma disposição especial para as exatas, fiz maturidade clássica na Itália. No colegial, tive um professor de física muito bom. Quando fui fazer o exame oral de física da maturidade clássica – um exame pesadíssimo, que avalia o programa integral de três anos em todas as disciplinas – o examinador, que nunca tinha me visto, pediu que eu descrevesse uma máquina para medir a transformação de pressão e volume com gases. Não me lembrava do que ele estava falando, e era algo que existia. Tive a cara de pau, graças àquele professor, de falar para o examinador: “Não me lembro, mas, se você ajudar, tento inventar essa máquina”. Ficamos meia hora, e inventei algo que “funcionava”. Tive nota máxima. E sorte, porque o cara poderia ter dito “dane-se”. Mas tive essa cara de pau graças àquele professor, porque era o estado de espírito com o qual a gente falava de física.

Como outros campos, o educacional também tem assistido a uma supervalorização das habilidades e competências, muitas vezes em detrimento do conhecimento, confundido com “conteudismo”.

Essa separação entre conhecimento e pensamento é artificial. É verdade que talvez não seja essencial saber quantos ingleses e quantos franceses morreram na Batalha de Azincourt, mas a significação da Batalha de Azincourt é importante. Se você acha que a Batalha de Azincourt aconteceu na Rússia durante a Revolução de Outubro, vai ser complicado pensar na sua significação. Por outro lado, o esforço de memória para se lembrar de quando foi Azincourt é facilitado caso você se apaixone pelo que aconteceu naquele momento. Essas duas coisas andam juntas. O conhecimento é muito mais facilmente assimilado quando está ligado à sua significação o tempo inteiro. E também a significação sem conhecimento, o que seria?

Em alguns países, o ensino superior tem passado a oferecer uma formação mais aberta, com disciplinas de diversas áreas nos primeiros anos, e especializações mais à frente. A universidade está absorvendo as funções que antes eram do ensino médio?

Sim, é o modelo americano que está se difundindo. É a ideia de que, no fundo, você vai para a universidade e faz no mínimo dois anos que são uma continua­ção do colegial, só que num contexto diferente. No caso brasileiro, isso seria bem-vindo, pois o colegial é muito curto em duração e em número de horas, se comparado com o resto do mundo. Um aluno muito bom pode entrar na faculdade aos 17 anos. Além de ser meio absurdo que alguém nessa idade faça uma escolha profissional – tudo bem, pode-se mudar de faculdade depois, o que não é nenhuma perda de tempo -, a idéia de que primeiro você faz o college e depois entra em medicina ou direito é interessante. Mas também poderíamos aumentar o tempo do colegial e o tempo de permanência na escola, que é curto no Brasil. Costumo pensar que, na universidade, os alunos de 1os e 2os anos poderiam ser ensinados pelos de 3os e 4os anos, e que a grande concentração de doutores deveria estar no colegial, com salários adequados.

Como seria isso para os alunos que têm necessidade de entrar logo no mercado de trabalho? Não iria afastá-los do ensino médio?

Mas você produz pessoas mais qualificadas. Quarenta anos atrás, quando me formei, ter terminado o ensino médio era um valor, até no mercado de trabalho. Hoje não é mais, não só porque se multiplicou o número de pessoas que terminam, mas também porque não tem mais a mesma qualidade. Um bom ensino médio melhora a qualidade de experiência de uma vida inteira. Que a pessoa possa ir para a universidade ou que se dedique a uma carreira técnica de qualquer tipo, tanto faz. É uma bagagem que fica com ela. Também é uma grande injustiça social ter um ensino que dura cinco horas. O que isso significa? Que os alunos de classe média e alta à tarde vão para o inglês, à natação, ao balé, à pintura japonesa, carregados para cima e para baixo por avós e motoristas. Os outros estão em casa, com a tia, esperando que a mãe volte do trabalho. Seria muito diferente se o ensino durasse até as 15h30, 16h. A aula de inglês e a de pintura têm de estar dentro do ensino, isso seria muito mais igualitário. Esse igualitário não significa um valor em si, mas sim dar essa possibilidade a todos.

Os casos de depressão e suicídio juvenis hoje são mais visíveis e falados. Por quê?

Segundo os dados, o suicídio de jovens e adolescentes aumentou relativamente pouco, 2%, o que pode ser acidental.

Mas começaram a pipocar casos em colégios de classe média. Isso está relacionado a esse congelamento a que constrangemos os jovens, impedindo-os de assumir sua vida adulta?

É verdade. Mas há um problema importante que tem de ser dito: começamos a medicar os jovens por depressão. Os antidepressivos apresentam um risco de condutas impulsivas, inclusive suicidas, que é real. É pequeno, mas quando acontece com você é muito grande. O manuseio desses remédios é complicado, a interrupção pode ser extremamente problemática, e isso, por certo, entra nessas estatísticas. Essa não é uma medicação com a qual se pode brincar. O uso da medicação na infância e na adolescência deveria ser muito cauteloso, limitado. É óbvio que é preciso saber se a criança poderia ser ajudada de outras maneiras antes de receitá-la. Mas, sobretudo, deve-se saber se a medicação não responde mais à intolerância dos pais em relação à eventual infelicidade ou fracasso dos filhos do que a uma real necessidade deles. O filho pode ser infeliz por muitas razões. Porque não gosta de ser adolescente, o que é compreensível, porque ninguém gosta. Ou porque está gordo e tem vergonha de tirar a camisa, ou porque tem camaradas que o estão tratando mal ou uma menina mandou-o se enxergar. Isso faz parte da vida.

As regras e convenções – lingüísticas, pedagógicas ou históricas – vêm sendo cada vez mais relativizadas. Como a escola, uma instituição que, em princípio, deveria tornar comuns os valores de uma sociedade, pode aliar a existência da norma à necessidade de uma pluralização do olhar?

É possível construir uma vida inteira contra as normas, mas para isso é preciso que haja normas. Caso contrário, não há contra o que se opor. O texto de iletrados, sem conhecimentos da ortografia, não vai ser nunca um Finnegans wake [de James Joyce]. Para escrever Finnegans wake, é preciso conhecer a ortografia e a língua perfeitamente. A partir disso, você faz um texto de vanguarda e tortura a ortografia, a gramática e a sintaxe inglesa. A relação com a norma é absolutamente constitutiva. Isso vale para tudo, para criar, para o conhecimento normativo, para as normas de conduta. A experiência contrária foi feita no fim dos anos 60 e nos anos 70 e se viu que crescer num ambiente totalmente permissivo curiosamente não cria sujeitos dotados de um espírito crítico muito vivo. Só cria sujeitos perdidos.

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Curtas

  •   Teve início em 29/06  a websérie “Caminhos do Devir – Volta às aulas pós-Covid-19”, com o debate sobre “Como aplicar a gestão de crises para planejar a volta às aulas de forma segura”. Os educadores e sócio-fundadores da Devir Projetos Educacionais, Luis Laurelli e Eloisa Ponzio, além do consultor Flávio Schmidt, consultor em gestão de crises do Grupo Trama Comunicação, analisaram as estratégias, cuidados e precauções para garantir uma volta às aulas que possa assegurar a saúde de professores e crianças e a tranquilidade das famílias. A conversa teve a mediação do editor do Trem das Letras, Rubem Barros. O encontro marcou também o lançamento do e-book “A Covid-19 nas escolas e o caminho para a retomada do presencial”, disponível para download, que pontua sobre os passos da retomada.  Texto publicado em 25/06/2020

  • O ano de 2020 marca o final do mandato de 12 dos 24 conselheiros do CNE, o Conselho Nacional de Educação. A primeira lista com sugestões de substitutos, deixada pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, provavelmente na correria a caminho do aeroporto, era composta principalmente por olavistas. Gerou resistência até dentro do próprio governo Bolsonaro. Diante do freio, puxado pelos militares, o ministro interino, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, está fazendo uma nova rodada de discussão para a escolha de outros nomes.  A Casa Civil será um dos principais interlocutores para definir a lista final. Se o padrão das escolhas continuar o mesmo de outras áreas, é provável que as escolas cívico-militares ganhem fôlego inaudito. Texto publicado em 25/06/2020

  • Além do Fundeb, é preciso ficar de olho na possível votação da Medida Provisória 934, que estabelece normas de excepcionalidade para a educação básica e superior em 2020. O relatório da deputada Luísa Canziani (PTB/PR) manteve entre as emendas que devem ir a plenário a liberação da obrigatoriedade do cumprimento das 800 horas para a educação infantil e de oferta da educação a distância na mesma etapa. A relatora deixa a decisão nas mãos dos gestores municipais. Além de contrariar todas as evidências científicas e pedagógicas que enfatizam os prejuízos da educação a distância para as crianças de até 5 anos, a medida pode significar a abertura da porteira para os grupos privados que atuam no negócio da educação a distância. Com as redes de ensino sufocadas pela falta de dinheiro, com aumento das despesas por causa da pandemia e queda na arrecadação de impostos de até 24%, impactando diretamente no Fundeb, principal fonte de recursos para a educação básica pública, a EAD pode ser vista por muitos como solução milagrosa. Mas será apenas um instrumento para cumprir a obrigação legal de oferta de ensino. E inadequado, no caso da educação infantil. É preciso ver o que falará mais alto, se o rigor burocrático ou o bom senso. Texto publicado em 25/06/2020

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