Foto: Maarten van den Heuvel/Iso Republic
Texto publicado em 17/04/2020
Em agosto de 2010, viajei à Colômbia a convite do Instituto C&A, para, com um grupo de professoras, conhecer a rede de bibliotecas de Bogotá. Como em toda viagem desse tipo, os organizadores locais tentam nos mostrar uma realidade rósea. Não era bem o caso de Silvia Castrillon, então presidente da Associação Colombiana de Leitura e Escrita (Asolectura) e uma das articuladoras da criação de um bem-sucedido sistema nacional de bibliotecas públicas.
As bibliotecas que visitamos em Bogotá não faziam parte desse sistema nacional, compunham uma rede da própria cidade. Havia um grupo pequeno e mais central de quatro bibliotecas, todas novíssimas e bem cuidadas. Como Silvia queria nos mostrar uma realidade mais variada, fomos também a bibliotecas escolares e a uma de bairro, que as crianças de colégios da região visitavam com frequência para atividades diversas.
Apesar de não reluzir, como as centrais, era também bem cuidada e seus funcionários se mostravam orgulhosos de estar ali. A certa altura, o monitor nos levou para ver os trabalhos de crianças de idades variadas, dos 4, 5 anos até os 10, 11. Eram pinturas, colagens, tapeçarias, sempre composições imagéticas representando vivências dos meninos e meninas.
Ao responder a uma pergunta sobre a presença quase residual de cenas de violência, o monitor contou que as crianças eram desestimuladas a retratar esse tipo de cena, para que não se lembrassem de episódios que poderiam tê-las marcado negativamente, gerando traumas e medos duradouros. A Colômbia, como se sabe, é um país duramente castigado pela violência, originada da luta pela terra e do confronto entre conservadores e liberais. Em 1948, houve o assassinato de um candidato a presidente, seguido de um massacre de 5 mil pessoas. Nas décadas posteriores, o país conviveu ainda com a guerrilha das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), sequestros, e o domínio dos cartéis de Cali e Medellín.
Ao fazer o comentário, o monitor foi imediatamente questionado por Castrillon, que perguntou se o fato de representarem a violência pela qual foram assombradas por tanto tempo não daria às crianças a condição de lidar melhor com ela, expressar seus temores, seus sentimentos, enfim, compartilhar suas angústias e purgá-las, ou ao menos tentar. O sorriso desgostoso do rapaz mostrou que aquele era um assunto que não o deixava à vontade, talvez por ele próprio não saber como reagir se o tema viesse à baila.
Creio que seja exatamente esse tipo de fuga do tema candente do momento que esteja acontecendo no Brasil nestes tempos da exaustiva pandemia do coronavírus. Sem saber quanto tempo ainda teremos de viver em isolamento, longe da normalidade cotidiana, parecemos atravessar uma corda bamba sobre um precipício em que, lá embaixo, nos esperam de um lado a areia movediça do vírus e do outro as águas pútridas da inépcia e da burrice desavergonhada.
E, ao invés de frearmos o instinto de ir sempre em frente para cumprir a missão dada – no caso, as horas/aula, os dias letivos, os objetivos de aprendizagem, as metas curriculares –, estamos fechando os olhos e esquecendo de perguntar o sentido da caminhada.
Anseio de expressão
Ora, por anos, décadas até, os educadores repetem convictos as críticas à pedagogia de vestibular, à falta de sentido dos conteúdos predeterminados, à falta de relação entre as disciplinas estanques e a realidade múltipla. Ao que parece, ninguém viu ainda que o coronavírus é o grande tema pedagógico deste momento, o trabalho por projetos que pode mobilizar os alunos da educação infantil ao ensino médio.
No que diz respeito às crianças menores, há aqui, como na Colômbia do exemplo, uma angústia muito grande sobre os porquês de todas as mudanças que as têm acometido. Quanta riqueza não podem proporcionar os desenhos e criações das crianças das pré-escolas? Que mundos estariam eles fabulando em suas mentes para que possam sair da prisão a que estão submetidas? Quantos jogos dramáticos e papéis não estão à disposição para que se ponham na posição do outro?
No campo da linguagem e da matemática, as relações entre o que haveria a aprender e a situação atual são inesgotáveis. Na linguagem, a própria palavra Covid já começa com um fonema desafiador para a introdução do tema tão caro ao método fônico. Não faltarão outras palavras ligadas à circunstância para que se decomponham de seu sentido geral até as sílabas e letras, ou para que se componham pelos sons. O contexto ajudará a fazer da pandemia o tijolo do momento.
Na matemática, dos quadros analíticos com números de doentes, mortes, infectados, curados, leitos hospitalares podem surgir relações da simples soma às probabilidades, passando por teoria dos conjuntos, porcentagens etc.
Numa crise que abarca o mundo todo, os aspectos históricos e geográficos permitem digressões de várias naturezas, como os hábitos alimentares da China, as proporções de diversas tragédias geológicas no continente asiático ao longo dos séculos e as características culturais que permitem o sucesso de soluções radicais de isolamento na Coreia do Sul. Assim como a biologia comparece em peso no estudo celular, na composição de vírus e bactérias, na forma como se combatem uns e outros.
Os exemplos seriam muitos ainda na química, na física, no exercício necessário de redigir e de tentar organizar o mundo interior por meio de palavras. Imaginem o que é para um adolescente não poder sair de casa para ver os amigos ou os/as ficantes. Ainda que antes eles não saíssem da frente do computador por opção, agora é diferente. É por restrição.
Enfim, neste momento em que há um mundo a discutir com crianças e adolescentes, parece que tudo que ocorre àqueles que discutem os rumos educacionais do país é definir como serão resolvidas as questões burocráticas que não poderão ter seu curso normal. Não sabemos ainda quando isso vai acabar ou quanto tempo vai durar, se mais dois meses ou mais dois anos. Não sabemos quem seremos depois de passada a tempestade, e não estamos aproveitando a oportunidade para refletir sobre nós mesmos e sobre as relações que estamos vivendo. Estamos nos atendo aos mesmos valores e objetivos de janeiro, quando, de lá até aqui, houve no meio fevereiro, março, meio abril, 2,138 milhões de casos e 142,7 mil mortes, das quais 1.924 no Brasil (em 16 de abril).
Escuta e diálogo
Enquanto estampamos na face tanta incerteza, não é possível não incorporar os jovens e mesmo as crianças nas reflexões sobre que mundo queremos e poderemos efetivamente ter depois destes meses em que uma força pouco conhecida nos impossibilita de caminhar. Mais do que isso, ela está nos propiciando uma chance de inversão: de que o campo normalmente ocupado pela escola, da suspensão espaço-temporal, se projete em toda a sociedade. Explico melhor, ou ao menos tento:
No livro Em defesa da escola – Uma questão pública (Editora Autêntica, 2014), a dupla de autores belgas Jan Masschelein e Maarten Simons regressa à Grécia antiga para resgatar o sentido da escola e do escolar (skholé). Antes de descreverem origem e objeto da escola, começam com o próprio termo e seus significados: tempo livre, descanso, adiamento, estudo, discussão, classe, escola, lugar de ensino.
A escola é um pouco de tudo isso, mas nem sempre com os sentidos que, à primeira vista, podem ser associados a essas palavras. Tempo livre, descanso, adiamento, no caso se ligam a uma ideia de deslocamento e suspensão. Deslocamento do espaço cotidiano da família e da cidade (a polis), para um espaço privilegiado (em relação a essas duas instâncias, não em termos de seletividade dos que têm direito de frequentá-la) onde deve acontecer o ensino, o jogo, o convívio, tudo isso seguindo um conjunto de regras próprias desse espaço. Espaço que, como já lembrava a filósofa Hannah Arendt em seu solitário mas seminal ensaio sobre educação (“A crise da Educação”, em Entre o passado e o futuro, Editora Perspectiva, 2000), significa para a criança a passagem do mundo onde deve estar protegida, o mundo da família (oikos), para o mundo público (a polis).
Esse tempo da suspensão num espaço preservado é aquele em que os seus frequentadores, os estudantes, devem deixar do lado de fora suas diferenças e privilégios. “(…) é importante ressaltar que a escola é uma invenção (política) específica da polis grega e que a escola grega surgiu como uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares na Grécia antiga”, ressaltam Masschelein e Simons. Ou seja, aqui a “ordem desigual natural” é cessada, podendo a invenção do escolar “ser descrita como a democratização do tempo livre”.
Espaço para a autodescoberta
O que os autores querem ressaltar é a condição particular em que foi erigida a ideia de escolarização. É ela que promove o processo de inserção dos mais jovens no mundo e, para isso, retira deles as exigências que logo depois lhes vão ser cobradas quando estiverem no espaço do trabalho e da política. Isso lhes dá – ou deveria dar, idealmente – a condição de descobrirem suas verdadeiras aptidões, de encontrarem significados condizentes com o que são ou estão tentando ser como sujeitos. Permite que eles vislumbrem – e aí o papel do professor é de fundamental importância, pois, quanto maior o seu repertório para descortinar mundos aos alunos, mais ele terá contribuído com as novas gerações – as verdades sobre as quais assentarão suas vidas.
Obviamente que é fácil enxergar em tudo isso uma abstração filosófica pretérita, desconectada da realidade abrasiva que tem afligido pais e professores. Pais que não sabem ser professores de seus filhos, o que é muito natural, pois paternidade e cátedra são muito diferentes. E professores que, de uma hora para outra, foram obrigados a incorporar novas competências e técnicas, que talvez ainda estejam por ser efetivamente criadas. E, pior do que isso, ganharam de brinde “assistentes” de alunos que se sentem no direito de cobrá-los em meio às próprias aulas, desconstruindo a autoridade do professor ante as crianças. Mais tarde, na adolescência dos rebentos, pagarão caro pela transgressão que ensinaram os filhos a realizar.
Se o tempo da pandemia não for longo, ficarão buracos de conhecimento e maturidade para alguns alunos, sobrarão estresses e depressões para muitos outros. Sem falar naqueles mais pobres, muitos dos quais talvez não voltem à escola por dela terem se sentido alijados por exigências que não puderam cumprir.
Mas, se as previsões de epidemiologistas mais cautelosos se consumarem, talvez consigamos pensar que tudo isso é uma chance, ao menos no âmbito pedagógico, de retomar o espaço e o tempo com outros olhos, antes que algum vírus faça isso por nós. De qualquer maneira, pagaremos um preço alto ao atravessar a pandemia. Que ao menos seja revertido em algum aprendizado.