Foto: Everton Zanella Alvarenga/Wikimedia Commons
Texto publicado em 20/05/2020
A Cinemateca Brasileira está sob duplo risco. De um lado, a falta de verbas, problema crônico agora em estado agudo pela absoluta acefalia no plano da cultura que vive o governo em âmbito federal. De outro, essa mesma acefalia está prestes a tomar posse na direção dessa instituição que até pouco tempo atrás era um dos grandes faróis na preservação da memória do país.
No último final de semana, em 16 e 17 de maio, circulou pelas redes sociais a carta intitulada “A Cinemateca pede socorro”, assinada em um primeiro momento por gente que tem seu nome fortemente vinculado à instituição, como a escritora Lygia Fagundes Telles, ex-presidente do Conselho e viúva de um de seus fundadores, Paulo Emilio Salles Gomes, Carlos Augusto Calil (ex-diretor executivo e ex-secretário municipal de Cultura), Ismail Xavier (ex-presidente do Conselho), Eduardo Morettin, Dora Mourão e Ugo Giorgetti, os três ex-membros do Conselho, e Esther Hamburger, professora da ECA/USP e, como todos os outros, estudiosa e/ou realizadora de atividades ligadas ao cinema e a sua história.
A carta elucida a atual penúria da Cinemateca, que, no quinto mês de 2020, ainda não recebeu nenhuma parcela de sua já minguada verba anual de R$ 12 milhões, expondo ainda o longo calvário pelo qual vem passando desde 2013, quando foi objeto de intervenção federal e perdeu sua autonomia administrativa após uma destrambelhada ação da então ministra da Cultura, Marta Suplicy (à época no PT). Além de perder vários profissionais técnicos de excelência em função da diminuição das verbas destinadas e da impossibilidade de ela própria captar contribuições, a Cinemateca passou ainda por um incêndio e uma enchente, resultado da falta de recursos para a conservação de seu acervo.
Acervo este que conta com algo em torno dos 250 mil rolos de filmes e um milhão de documentos, sujeitos a intempéries e deterioração física, que constituem o maior conjunto de memória audiovisual da América Latina. Onde já foram achados e recuperados não só filmes brasileiros, mas clássicos da cinematografia mundial. A história do cinema brasileiro, de seus realizadores, a literatura que se produziu a respeito no Brasil e no exterior desde o nascimento dessa linguagem, no final do século 19, até os dias de hoje, tudo está registrado e catalogado nas duas sedes da instituição – o antigo matadouro municipal, na Vila Mariana, e o mais recente arquivo, montado na Vila Leopoldina, ambos na capital paulista.
A conservação de filmes é uma atividade cara e que exige formação técnica apropriada. A ambientação adequada dos filmes mais antigos – aqueles de nitrato – é mais delicada em função de se tratar de material altamente inflamável. A Cinemateca já passou por quatro incêndios ao longo de sua história. Apenas no último deles, já em meio à crise atual, em 2016, foram perdidos 1.003 rolos de filmes de nitrato, correspondentes a 731 títulos. Como a produção em bases de nitrato foi apenas até 1951, sendo então substituída por bases de acetato (para maior detalhamento consultar o “Guia do Image Permanence Institute para armazenamento de filmes de acetato”, o incêndio significou o apagamento de significativo número de documentos audiovisuais da primeira metade do século passado, obviamente parte daqueles mais raros e difíceis de serem encontrados.
Seria de se supor que qualquer governo zeloso da história de seu país tivesse preocupação especial com todo tipo de documentos que possam não só contá-la, mas ajudar os historiadores e pesquisadores em geral a descobrir novos pontos de vista, explicações e hipóteses para os diversos acontecimentos que foram objeto de registro. É o que fez, por exemplo, o governo dos Estados Unidos ao tornar compulsório o depósito de uma cópia de todos os filmes produzidos no país desde o princípio do cinema, quando as fitas ainda estavam longe de ser o único programa em meio às feiras de atrações, nas quais se juntavam atividades circenses, malabarismos, música, esquetes teatrais, enfim, novidades de toda ordem.
Foi essa consciência da importância daqueles novos objetos culturais que garantiu que, décadas depois, ao serem investigados pelos historiadores do cinema, aqueles primeiros filmetes adquirissem novo peso na história, fruto da reinterpretação que a preservação da memória possibilita.
É justamente isso que está em risco neste momento. E não só porque o dinheiro que já era escasso tenderá a ser quase invisível nestes tempos de pandemia. Mas porque, com as atenções todas voltadas – de forma muito mais do que justa, registre-se – a esse massacre cotidiano que tem sido acompanhar a contabilidade de mortos, estamos também, tenham certeza, sob um ataque orquestrado.
Sim, isso mesmo. Um ataque que visa a destruição seletiva de valores comuns, histórias, razões, objetos culturais, objetivos educacionais e científicos e muitas outras coisas arbitrária e inescrupulosamente classificados como “de esquerda”, “marxistas” ou “globalistas”, ou qualquer pseudoconceito que tenta apenas classificar os que são tratados como inimigos e suas ideias como algo a exterminar.
Não, infelizmente não se trata de uma teoria da conspiração ralinha como a sopa que este governo tem servido aos pobres durante a pandemia, esta no formato de auxílios que exigem filas contaminantes, empréstimos aos pequenos empresários que não se consumam e outros itens do gênero.
Exemplo mais nítido de tudo isso é o que tem sido feito à Amazônia, cuja devastação já impressionava no ano passado e que neste ano dobra ou triplica seus percentuais. Não foi à toa que os apoios dos governos da Alemanha e da Noruega ao Fundo Amazônia foram obstruídos, ou que a direção de todos os órgãos de controle contra o desmatamento ou voltados à preservação das áreas indígenas foram transferidas a militares ou àqueles que deliberadamente querem acabar com a floresta.
O aparelhamento do estado por parte dos militares é um verdadeiro acinte. Em meio ao caos da pandemia, não bastava já a nomeação, ainda que como interino, de um militar sem experiência anterior na administração da saúde, e ainda arrumou-se lugar para outros oito ou nove. As aposentadorias não estão sendo pagas? Chamem militares. As escolas não são fábricas de formação de meninos obedientes e cordatos? Transformemo-las em militares (mas chamemos de cívico-militares, para dar impressão de que nos importamos com civismo…). E, assim, de vaguinha em vaguinha, já são contabilizados mais de 3 mil militares da reserva ou em atividade em postos do governo. É uma verdadeira aula de aparelhamento.
A cultura, com seu fortíssimo poder simbólico, é outro alvo dos mais notórios. Porque destruir a memória e as obras que representam os afetos que as pessoas trazem ao longo de suas vidas é uma forma de matá-las ainda vivas, uma espécie de tortura em que as mãos emporcalhadas não chegam ao nosso corpo.
Ela se junta à atitude mais escandalosa de não dar assistência devida a estados, municípios e seus hospitais e profissionais de saúde, numa espécie de greve branca, em que tudo acontece em câmera lenta, muito lenta, fora o que não dá certo e tem de começar de novo. Vide a compra dos EPIs, os materiais de proteção para os profissionais da área da saúde.
Tudo isso temperado com uma série de factoides para chamar atenção e causar indignação. Muitos deles já passíveis de caracterizar o crime de responsabilidade em que o presidente deveria ser imputado.
Mas, no início deste texto houve a menção a um segundo risco. Este foi anunciado no dia de hoje, quarta-feira, 20 de maio de 2020. É a indicação da atriz Regina Duarte para a direção da Cinemateca Brasileira, esta mesma combalida Cinemateca que já vive tantos problemas. A Regina Duarte que comemorou o “feito” de conseguir uma assinatura do ministro do Turismo depois de um mês, tempo recorde de circulação de documentos em tão açodado governo!
A solução de como alocar a atriz, aliás, deverá demandar mais um longo tempo de inação governamental, pois não há cargo definido ainda para ela. Como a Cinemateca está sob o guarda-chuva da Associação de Comunicação Educativa Roquete Pinto (Acerp), uma organização social, haveria alguns entraves relatados em matéria desta quarta, 20, pela Folha de S.Paulo. Segundo advogada ouvida pelo jornal, haveria algumas possíveis soluções para o dito cargo: uma coordenação-geral, com vinculação à Secretaria do Audiovisual, ou sua designação como superintendente da Cinemateca. Ou mesmo a volta da entidade para o âmbito do governo federal. Se lembrarmos do tempo que Regina Duarte levou para assumir a secretaria na qual marcou sua gestão pela mais do que comentada entrevista à CNN, podemos antever um longo processo até que ela se acomode em sua nova cadeira, seja ela qual for.
Vamos ver, então, que fará Regina Duarte. Essa mesma Regina que quer se sentir leve, liberta de cadáveres, os cadáveres da história que ela talvez queira dispensar. Que dirá ela se lhe apresentarem filmes como Shoah (1985), de Claude Lanzmann, ou Noite e Neblina (1956), de Alain Resnais, ou ainda o nosso mais recente Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund? Pedirá para incinerá-los ou que seus negativos fiquem guardados em subterrâneos que seus amigos e comparsas sempre gostaram de frequentar?
É sempre bom lembrar que a Cinemateca Brasileira está sediada no antigo matadouro municipal da cidade de São Paulo. Quem sabe se a lembrança do sangue que já correu ali não afasta de lá essa senhora que não quer relembrar o passado para poder viver em paz com seus seletos amigos do presente?