Foto: Filmlinc.org
Texto publicado em 03/06/2020
Uma conjunção de fatores inesperados compôs um cenário até há pouco tempo inimaginável no mundo e no Brasil, especialmente no Brasil. De um lado, aquilo que parecia uma ameaça longínqua tornou-se realidade não só aqui como em todo o planeta, com a rápida disseminação do coronavírus e a revelação de que seu potencial de letalidade é maior do que o presumido a princípio. Em especial quando há degradação das condições ambientais, como, por exemplo, naquilo que se refere a saneamento básico, habitação e saúde pública.
De outro, o encontro do vírus com um personagem que mais parece um vilão de história em quadrinhos de má qualidade, mal desenhada e com roteiro inverossímil, vilão este que se encontra no leme do barco local, protegido por uma armada fardada e outra fadada à bufonaria. Tudo isso temperado com uma terrível sequência de mortes de símbolos das artes, sobretudo da música e da literatura nacionais.
A remissão a O anjo exterminador, filme de Luís Buñuel lançado em 1962, é quase inevitável. A grande conexão é dada pelo mote do filme, a situação disparadora de todas as tensões: em um clássico jantar burguês, com seus ritos, asperezas e maledicências, de repente os convivas se veem impossibilitados de deixar o local. Sem nenhuma barreira visível, eles não conseguem ultrapassar um certo limite, como se contidos por um campo de força.
O anjo exterminador é, assim, a primeira menção à obra de Buñuel em recente artigo do crítico Inácio Araujo na Folha de S.Paulo (Cinema de Luís Buñuel parece ter sido feito para o mundo da Covid-19, Ilustrada, 25 de maio). Araujo ainda menciona A Idade do ouro (1930) e O alucinado (1953) para traçar relações entre a obra do cineasta aragonês e o atual momento, talvez porque uma das mais recorrentes sensações é a de que vivemos algo “surreal”.
De fato, quando se pensa no cinema surrealista é provável que o primeiro filme que venha à memória de muita gente seja O cão andaluz (1929), parceria entre Buñuel e Salvador Dali, em especial a famosa cena da lâmina que corta o olho. Isso apesar de ambos então ainda não terem aderido ao grupo dos surrealistas de Paris, o que fariam logo na sequência, trazendo inclusive o filme como uma espécie de cartão de visita.
Mas como o próprio Buñuel narra em Meu último suspiro (1982, última edição pela Cosac Naify, esgotada), sua autobiografia escrita em parceria com Jean-Claude Carrière, o roteirista da fase final de sua carreira, o tipo de situação proposta em O anjo exterminador é recorrente em sua filmografia. Nas palavras do cineasta, que segreda o fato de este ser um de seus raros filmes que ele costumava rever, o que ele via na fita era “um grupo de pessoas que não podem fazer o que têm vontade de fazer: sair de um aposento”. “Impossibilidade inexplicável de satisfazer um desejo simples”, diz ele. No trecho, ele menciona três outras obras em que esse desejo insatisfeito e inalcançável está presente: em Idade do ouro (1930), em que “um casal quer se unir e não consegue”; em Ensaio de um crime (1955), no qual o protagonista tenta matar e não materializa o ato (vá lá, neste caso o desejo não é tão simples…); em Esse obscuro objeto do desejo (1977), seu último filme, em que um homem velho tem um desejo sexual que não consegue satisfazer.
O universo dos sonhos e do desejo, sobretudo aquele sexual, alvo de fortes repressões na sociedade católica espanhola, povoaram a mente de Buñuel a vida toda. Em sua primeira fase, explicitamente surrealista, isso era procurado no confronto de imagens que passam longe daquele cinema que objetiva a transparência das ações por meio da omissão do artefato. Como definiria anos depois seu parceiro Carrière em A linguagem secreta do cinema (Nova Fronteira, 1995, esgotado): “O que a plateia não vê é o subterfúgio. A ficção, a própria natureza do filme, as técnicas da filmagem e da projeção – tudo é esquecido, afastado pelo poder físico da imagem falada, aquela máscara barulhenta colocada sobre o semblante da realidade”. Esse é o cinema clássico hollywoodiano, aquele que se tornou hegemônico e catapultou a indústria a níveis estratosféricos.
O de Buñuel, ainda que em alguns momentos tenha se tornado um pouco mais cartesiano, passa longe desse modelo. E mesmo em suas expressões mais próximas do neorrealismo, como em alguns filmes rodados no México, o cineasta não deixa de lado sua fé crítica nos arranjos sociais que jogam pessoas para as margens do sistema, seja no México ou na Europa pré-2ª Guerra.
Exemplos disso são duas de suas obras-primas, uma realizada na Espanha em 1933, As Hurdes/Terra sem pão (Las Hurdes/Tierra sin pan), e a outra no México, Os esquecidos (Los olvidados, 1950), premiado em Cannes no ano de seu lançamento, ambos disponíveis no YouTube.
Los olvidados, aliás, passou por um episódio que é um exemplo típico do “complexo de vira-latas” com que Nelson Rodrigues batizaria a insegurança da seleção brasileira de futebol antes que ganhássemos a Copa do Mundo de 1958. O filme foi lançado no México antes de ser apresentado em festivais europeus e foi firmemente rechaçado. Com aquele orgulho tipicamente latino-americano que se ofende quando suas mazelas são expostas, a crítica local desancou a obra, dizendo que Buñuel carregava nas tintas ao retratar a infância e a juventude das periferias mexicanas. Bastou o filme ser reconhecido na Europa para que a recepção ao cineasta espanhol e seu filme se transfigurasse, como ele conta na já mencionada autobiografia.
Los olvidados narra a história de um grupo de garotos com idades (presumidas) que variam dos 10 aos 18 anos. São órfãos de pai, de mãe ou de ambos que vivem pelas ruas, alguns tentando ser corretos, outros se gabando de suas habilidades para pequenos roubos e golpes. Um universo bem próximo ao de Capitães de areia (1937, Cia das Letras), de Jorge Amado, ou ao de Pixote (1977), de Hector Babenco.
Com fotografia em preto e branco e uma atmosfera que lembra em muito algumas obras do neorrealismo italiano, o filme de alguma maneira espelha bem mais uma realidade brasileira ainda presente, flagrada no abandono da infância, na criminalização da juventude e na violência do aparato policial, do que os mais calcados no plano onírico.
Mas talvez ainda mais impressionante nesta caminhada de retorno ao passado que o Brasil vem fazendo seja assistir a Las Hurdes, documentário rodado numa antiga área de planaltos que foi ficando esquecida do mundo. Situada no oeste espanhol, na região de Estremadura, perto da cidade de Salamanca, o conjunto de pequenas vilas foi sofrendo com o despovoamento que as atinge até hoje. Séculos atrás, essas montanhas abrigaram judeus que fugiam da Inquisição.
O filme começa com um registro, logo na chegada à região, de uma festa popular em que cavaleiros concorrem para espetar lanças em galinhas vivas, num espetáculo de cores medievais. À medida que se vai penetrando no conjunto de montanhas e micro povoados, vamos conhecendo a precariedade absoluta em que vivem os habitantes remanescentes. A pobreza é tanta que nem pão eles conseguem fazer por ali. As imagens, também em preto e branco, são fortes e belíssimas, talvez ainda mais pelo contraste entre uma natureza árida, de muitas pedras que restaram pelos caminhos, e humanos de uma rusticidade inimaginável.
Há ali um magnetismo como o relatado pelo próprio Buñuel, quando retornou à região anos depois. Um habitante local, com quem ele havia se encontrado numa apresentação do filme na França, veio cumprimentá-lo depois de o reconhecer. O diretor resume em poucas palavras a relação que temos com os lugares onde estão nossas raízes. “Aqueles homens emigravam, mas voltavam sempre a sua terra. Uma força os atraía para aquele inferno que lhes pertencia.” Se tivermos de ir embora daqui nestes dias que nos parecem irreais, talvez possamos voltar mais tarde para arder em nossa própria terra.