Texto republicado em 15/8/2020. Publicação original em setembro de 2017 na Revista Educação (www.revistaeducacao.com.br)
Foto: Kinmiki/Iso Republic
A frase/verso logo no início da narrativa permite entrever o tom da obra e um dileto diálogo (consciente ou não): “Sem o colo da mãe eu me fartava em falta de amor”. A imagem paradoxal remete a Manoel de Barros e seus “Deslimites da palavra”: “Ando muito completo de vazios/Meu órgão de morrer me predomina” (Livro das Ignorãças).
De fato, Vermelho amargo (2011), última obra publicada em vida pelo escritor mineiro Bartolomeu Campos Queirós, falecido em 2012, evoca de imediato a atmosfera de Manoel de Barros. A prosa de Bartolomeu é toda ela poética, seja em sua noção rítmica ou mais ainda na capacidade de criar imagens que dão vida às coisas e objetos e de acrescer novas formas e sentidos às palavras para que estas possam dar conta da imensidão dos sentimentos.
A palavra, os sentidos, a compreensão do mundo e das dores a que fomos sujeitados, a digestão de tudo isso pela memória que “suporta o passado por reinventá-lo incansavelmente” são o combustível desse mergulho nas lembranças, traumas e fantasias da infância. Constituem um dos livros autobiográficos do autor.
Nesse mundo, o tomate que se manifesta em “cor e cólera” consegue a um só tempo ser símbolo e alegoria de uma vida familiar muito cedo transformada pela morte da mãe. De uma hora para outra, os tomates que eram cortados em cruz e “se transfiguravam em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa”, passam a ser talhados por uma faca assustadora, resultando em fatias ultrafinas divididas qual ração pelas mãos da madrasta.
A moça, sempre atazanada pela presença do fantasma da ex-mulher morta, é um poço de secura, qual um tomate que houvesse perdido toda sua água e se enrugado. Assim, o menino e seus irmãos não têm mais o contraponto da doçura materna à dureza repressora do pai, que interrompe os tempos de alegria entre os irmãos, seja no dia a dia, seja na convicção com que faz dos filhos exilados ao longo dos anos.
Para driblar essa realidade, alguns caminhos se apresentam. Pode ser a atividade constante, como apregoa a vizinha para quem o silêncio é a “casa dos fantasmas”. Pode ser a mentira e a dissimulação para agradar o que se sabe que o outro espera – no caso, os adultos, o pai, a religião. Ou o mergulho na compreensão do mundo, na extensão das palavras que podem exprimir os sentimentos, as dores, ajudar a elaborar o passado que insiste em se fazer presente.
Mas, como diz o narrador, “há dias em que o passado me acorda e não posso desvivê-lo”. Se é assim, o jeito é aumentar a extensão do mundo e de si próprio, à la Wittgenstein, conhecendo mais palavras “para nomear o incômodo perpétuo instalado pela dor”.
Ao que parece, o trem andando em que Bartolomeu Queirós subiu ao nascer o fez equilibrar-se em meio a um mar de palavras que revelaram e criaram a pessoa que ele foi. Alguém que de forma concisa e com imagens poderosas faz reviver no outro a vida que pulsava nele próprio.
Ficha Técnica
Vermelho amargo, de Bartolomeu Campos Queirós (Editora Global, 2ª. Edição, 2016, 74 páginas, R$ 42). Prêmio São Paulo de Literatura de melhor livro do ano (2012)