Texto publicado em 08/09/2020
Foto: Chris HP/Iso Republic
A direção escolar é mais um capítulo em que a educação brasileira parece ter empacado num ponto, discutindo o papel de quem exerce o cargo a partir de apenas alguns pontos muito específicos, que acabam por subjugar a potência de sua ação. Discute-se muito o processo de escolha do diretor – se por indicação política, eleição ou qualificação técnica – e o contexto em que esse profissional irá atuar, levando em conta o grau de autonomia, as restrições financeiras e burocráticas.
Tudo isso, indiscutivelmente, é de grande importância. Mas, considerando-se que a ação do diretor ou do grupo gestor da escola é o segundo fator de maior impacto, no âmbito intraescolar, para a obtenção de bons resultados educacionais, essas vertentes são claramente insuficientes. Foi a partir dessa constatação que Antônio Gois, jornalista que cobre educação desde 1996 e tornou-se uma das maiores referências no país depois de anos trabalhando para Folha de S.Paulo e O Globo, começou a prestar mais atenção ao tema. O resultado desse mergulho, que envolveu uma longa pesquisa in loco em Nova York e viagens ao Canadá, Chile, Singapura e México, está sendo lançado agora em livro, pela Editora Moderna: Líderes na escola: o que fazem bons diretores e diretoras, e como os melhores sistemas educacionais do mundo os selecionam, formam e apoiam (Fundação Santillana e Editora Moderna). A obra está disponível para download gratuito no link mod.lk/lideresc.
Hoje colunista do jornal carioca e diretor da Jeduca (Associação dos Jornalistas de Educação), Gois havia realizado algumas matérias em que tentava investigar o que diferenciava as escolas que tinham um bom trabalho de gestão. Ao procurar trabalhos acadêmicos no Brasil, achou pouca coisa que pudesse ajudá-lo a sistematizar procedimentos e a entender fatores que levassem a resultados satisfatórios.
Deparou-se com trabalhos como o da pesquisadora Sandra Regina Holanda Mariano, que realizou uma revisão bibliográfica de teses produzidas no Brasil e chegou à conclusão de que há poucos estudos pensando no diretor como alguém autônomo e capaz de transformar a realidade. “Ela conclui que há muitas pesquisas sobre os contextos escolares, em como as políticas públicas prejudicam a ação em sala de aula”.
No correr do processo, recebeu uma bolsa da Fundação Spencer, na Universidade Columbia, para jornalistas de educação.
Ao comparar os modelos de outros países com o que pode constatar aqui – especialmente na escola de Alagoas que analisou – os pontos centrais para uma boa atuação do gestor giram em torno das mesmas questões. E, como diz Gois ao citar o vice-ministro da Educação de Ontário, no Canadá, “Todo modelo é uma combinação de pressão e suporte”. As doses de um e de outro podem variar muito. Mas ambos sempre serão marcar presentes. Veja a seguir a entrevista concedida pelo jornalista/pesquisador ao Trem das Letras.
Como a imprensa brasileira tem tratado a questão dos diretores escolares, se é que tem tratado?
No capítulo final tem uma frase minha mais ou menos assim: o debate feito pelos meios de comunicação insiste demais na forma de acesso, se é por eleição, processo seletivo ou indicação política. Não que isso não seja importante. Só que a gente só discute isso e não olha outras coisas que são igualmente importantes. Olhar para o que esses diretores fazem quando estão no cargo é tão importante quanto olhar para os processos de seleção. Faço no livro uma afirmação mais contundente. Digo que a eleição não é garantia de que a gestão vai ser democrática; a seleção não é garantia de que a gestão vai ser eficiente e mesmo o pior modelo possível, que é o da indicação política, pode resultar num bom gestor. Mesmo esse modelo que as pesquisas mostram que é o pior possível, pois abre a escola para uma política partidária, pode acabar sendo bom.
O que te levou a este tema e qual o caminho percorrido?
Sentia falta de um olhar mais aguçado sobre as ações dos diretores que conseguiram transformar suas escolas. Comecei a tatear esse terreno porque fiz uma matéria sobre um diretor numa escola em uma favela no Rio; depois fiz uma matéria sobre um diretor que ganhou o prêmio de gestão escolar, em São José do Rio Preto. Aí fiz uma série para o Canal Futura, sobre os diretores que transformaram suas escolas.
Logo depois do projeto do Futura, fiz uma série com 5 diretores de 5 estados, para contar as histórias de transformação. Daí, apesar de estarem em contextos diferentes, percebi que tinham coisas parecidas entre o que estavam fazendo. Pensei: “deixa eu ver se tem estudos sobre o que esses caras fazem”. Quando fui pesquisar estudos do Brasil, achei muito poucos, em comparação com a produção de outros países.
E qual foi a base teórica que te deu suporte?
Achei uma literatura anglo-saxã muito grande, com livros e livros. Aí resolvi fazer o livro. Analisei diretores do interior de Alagoas, Santiago do Chile, Monterrey, no México, de uma escola num bairro pobre (Queens) de Nova York, outra em Toronto e uma escola muito boa em Singapura. Ou seja, tudo completamente diferente. Mas, mesmo comparando Nova York com Alagoas, com o México, percebi que parecia que os diretores estavam falando a mesma coisa. Já na série do Futura eu tinha percebido isso. Intuitivamente esses caras estão envolvendo a comunidade nas decisões, criando laços com ela; estão resolvendo os problemas de disciplina dos alunos, chamando esses alunos para conversar. Estão pactuando isso. Eles são democráticos, mas uma vez pactuado, daí eles viram guardiães daquilo. Algo como “o código disciplinar foi codiscutido, agora deve ser cumprido”. São diretores com autoridade, sem autoritarismo. Tem uma postura de “vamos em busca do que falta para a gente conseguir isso aqui”.
No livro, procuro mostrar como esses diretores fizeram essas mudanças, mas sugerindo também uma reflexão de que não podemos esperar milagres se não houver mudanças no sistema.
E como se dá esse aprendizado do que fazer?
A diretora de Alagoas, por exemplo, quando eu sentei com ela depois da minha apuração, perguntei onde ela havia aprendido aquilo que ela aplicava. Ela me disse que havia aprendido na prática. Comunicar objetivos em comum, envolver todos, pactuar metas, estabelecer laços com a comunidade interna e externa. Ela foi fazendo um roteiro que era parecido com o que falam as pesquisas mais citadas em nível internacional.
Sempre se deve relativizar: pode ser que estabelecer laços com a comunidade em alguns contextos não seja tão importante como em outros. Varia o contexto da escola A e B, que podem ter necessidades diferentes. São 6, 7 dimensões mais importantes, deve-se ficar atento a elas, mas há uma sensibilidade para saber quais são mais importantes em cada contexto.
E não é apenas uma questão de o que fazer, mas também de como fazer, não?
Exato. O caso do Chile ilustra isso muito bem. Elas chegam à escola e identificam um problema de aprendizagem numa turma. Um gestor mais açodado iria direto ter uma conversa com a professora. Outra, mais experiente, vai propondo atividades na escola em geral, atacando pela beiradas, para construir confiança. No momento que ela sente que conquistou a confiança, aí ela vai agir na parte pedagógica, falar sobre o que não está dando certo, que será preciso mudar.
A diretora do Chile com quem tive contato teve de falar com uma professora que era muito compromissada, mas que usava estratégias antiquadas. Era uma professora querida pela comunidade e tal, mas que não conseguia alfabetizar. Até o momento em que a diretora sugere que ela mude de turma. Ela não queria, mas a diretora foi firme, pois o método dela não estava alfabetizando. Se ela tomasse essa atitude quando chegou, seria vista como uma bruxa autoritária. Mas teve a sensibilidade de primeiro conquistar a confiança da comunidade educacional.
E os modelos de gestão impostos de fora para dentro, muitas vezes sem conhecimento do que seja a realidade escolar?
Há mudanças trazidas do mundo empresarial, que tentam impor ao mundo educacional. Tem coisas péssimas, como fazer uma política de bônus como se estivesse numa fábrica de cerveja. Mas tem coisas da literatura de gestão em que você está lidando com o humano. Em Singapura, em Ontário, eles olham também para empresas, visitam em busca de modelos. Mas qual a vantagem desses modelos educacionais? É que os educadores são altamente empoderados. Eles olham para esses sistemas empresariais e adaptam para a realidade deles.
O capítulo de Nova York responde bem à tua pergunta. Não conhecia ninguém e não tinha portas abertas nem estando em Columbia. Quando consegui uma entrada, foi ótima. Foi legal poder contar a história de todos os erros e acertos. Quando o Bloomberg assume a prefeitura, ele vem com toda aquela visão empresarial. No caso de diretor escolar, a visão dele é que os caras precisavam ser como CEOs de grandes empresas. Aí ele montou uma fundação para formar todos os novos diretores de Nova York. Todos ou grande parte, mas uma fundação cheia de dinheiro público e privado. Jack Welsh, da G&E era o conselheiro. A cabeça empresarial. Mas, no caso deles, era empresarial, mas tinha muita gente do chão de escola também. Mesmo em Nova York, mesmo na administração pública, havia uma ideia de adaptar o modelo empresarial e chamar gente das escolas para contribuir.
Eles fizeram uma megaformação, melhor do que qualquer MBA. Mas os primeiros formados começaram a ir para a escola e a bater de volta.
Por quê?
Eles perceberam que o sistema não estava absorvendo essas megadiretores. Eles se sentiam despreparados, apesar da megaformação, não havia um programa de diretoria, de apoio. Era algo tipo “depois dessa megaformação, vai lá que agora você vai resolver tudo”. Mas isso não funcionou. Aí eles foram aprendendo com os erros. Viram que precisavam ter uma mentoria para esses diretores novatos. Mas só isso não bastava. Não queriam que esse diretor fosse o cara que já tinha todas as respostas prontas. Queriam que o diretor fosse alguém que soubesse liderar processos mais complexos, em que a comunidade fosse chamada para refletir e discutir os seus problemas. Para isso, não adianta formar o diretor se os professores não compartilharem essa filosofia.
Que experiências você acha que podem ajudar no nosso caso?
Você precisa ter uma coerência no sistema, ter um tempo de maturação. Aí vamos a algumas conclusões fortes do livro: é preciso ter marcos de gestão. Fiz uma pesquisa e o que você tem no Brasil, geralmente, são leis com linguagem burocrática em que coisas genéricas como “zelar pelo bem-estar do aluno” têm o mesmo peso na função do diretor que responder ao censo escolar. É necessário ter processos de construção de cada sistema que digam o que se espera do diretor de escola, com clareza. Esse é um ponto de partida para a seleção, para a formação, o apoio, o sistema com avaliação, tudo tem de considerar isso. Chile, Nova York e Ontário sentaram para discutir documentos que não são leis, mas são documentos fortes o suficiente para dizer o que esperam do diretor, a partir das experiências anteriores. Se você souber o que quer do diretor, dá para ir em busca de coerência, de fazer com que o sistema caminhe para harmonizar isso.
E como anda a relação com as universidades nesse quesito?
Há uma dificuldade, por isso muitos sistemas educacionais acabam fazendo a própria formação do diretor. Você chega à universidade, e esse problema não é só do Brasil, acontece em qualquer lugar do mundo, e tem professor universitário que há anos estuda aquele tópico, que tem já a ementa ali, e é muito difícil você chegar e dizer para ele: “olha, tudo bem, mas o que eu preciso na minha rede é isso”. Como foi feito em Ontário, ou no Chile e em Nova York, quando você envolve a academia, os sistemas escolares, e cria um documento que seja minimamente aceito por todos, que tenha coerência. Na Província de Ontário, esse documento, o Leadership Framework deles, o curso que a Universidade de Toronto vai oferecer, para ser aceito na ponta, pelo Departamento de Educação de Toronto, tem de provar que foi formulado em consonância com o marco. Você envolve toda a cadeia, é isso que Nova York aprendeu. Não adianta ter uma ideia genial e dar uma formação fantástica inspirada num modelo empresarial. Tem de conversar com os russos, como dizia o Garrincha. E tem muito russo no sistema educacional.
E ucraniano e… (risos)
Russo, ucraniano, afegão, cada um fala uma língua e entende a coisa de um lado. Em Ontário, eles conseguiram construir confiança no modelo, chamaram diversos atores, academia, pais, sindicato, representantes de professores e falaram “queremos construir um modelo, e precisamos chegar a um documento de orientação”. Na hora da implementação, isso facilitou muito, porque não foi algo imposto. Aqui no Brasil, a gente precisa ter um marco de gestão. Aí, o problema é bater na porta do MEC e pedir um marco de gestão. Ainda mais no caso do Brasil, se vier de Brasília…. desconfio que virá uma coisa normativa, com um monte de vícios que já conhecemos, que não vai dialogar com as diferentes realidades nacionais. Mas, enfim, isso é só achismo.
Uma curiosidade: você acabou não indo à Inglaterra, que é uma referência nesse tema. Por quê?
Eu já tinha Ontário, no Canadá, e Nova York. Nesse debate de liderança, [os países que mais têm se destacado são] Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália. Muitos dos autores estão no Reino Unido. A Universidade de Chicago cita o Reino Unido, e os neozeolandeses. Ontário tem mais visibilidade, não só pelos resultados do Pisa, e é mais citado em termos de liderança.
O modelo do Reino Unido é muito mais difícil de se implementar do que o de Ontário, que tem mais diálogo. Eu gosto de uma frase do vice-ministro de Educação de Ontário: “Todo modelo é uma combinação de pressão e suporte.” É mentira que não tem pressão na Finlândia. Só que tem muito mais suporte do que pressão, muito mais autonomia do que pressão. É mentira que a Nova York do Bloomberg não tinha suporte. Tinha muita pressão, mas tinha suporte também. Mas como você faz a mediação disso? O vice-ministro respondia isso da seguinte maneira: “aqui é suporte, suporte, suporte, pressão. Suporte, suporte, suporte, pressão.” Eles tentaram equilibrar apostando muito no suporte, e menos na pressão. Mas tem pressão. Ao contrário dos Estados Unidos e da Inglaterra, lá não vai ter fechamento de escola.
A literatura acadêmica anglo-saxã fala muito da importância de dar autonomia para o diretor, inclusive autonomia de contratar e demitir professor. Acho até que faz sentido, mas, para funcionar no Brasil, precisaria haver uma mudança muito grande no sistema. Sem ter diretores formados para isso e confiança dos professores, se tentarmos implantar uma reforma dessas de cima para baixo, 80% serão contrários.