Crédito fotos: Divulgação/Samba Riachão
Publicado em 30/03/2020
O sambista baiano Riachão, nome artístico de Clementino Rodrigues, faleceu enquanto dormia, na madrugada do dia 30 de março. Riachão tinha 98 anos e era um dos últimos representantes de toda uma época do samba baiano, ao lado de Batatinha e Nelson Rufino, como resumiu notícia do Uol.
Além de suas músicas, entre as quais a mais famosa foi o sucesso Cada macaco no seu galho, dos anos 70, o mais conhecido documento a retratar a memória do músico é o documentário Samba Riachão, de 2001. Dirigido pelo também compositor Jorge Alfredo, foi considerado em 2004 como um dos dez mais importantes documentários musicais brasileiros, por ocasião do Festival É Tudo Verdade. Quem quiser conhecer um pouco sobre Batatinha, pode recorrer ao YouTube para assistir a Batatinha e o Samba oculto da Bahia, de 2007, média-metragem dirigido por Pedro Abib.
A seguir, Trem das Letras rememora matéria jornalística veiculada em 2004 na revista Guest, publicação do Grupo Accor (hotéis), sobre o filme que entrava então em cartaz no circuito comercial de algumas grandes cidades brasileiras. Provavelmente, para ficar pouco tempo em poucas salas, destino de uma população de raros cinéfilos e que cada vez mais vai deixando submersos os traços de suas manifestações populares.
A GRANDE TRAVESSIA DE RIACHÃO
Filme sobre sambista baiano, autor de “Cada macaco no seu galho”, estréia depois de quase três anos de espera
Três anos depois de ter dividido com Lavoura Arcaica o prêmio do júri de melhor filme do Festival de Brasília – e de ter abocanhado sozinho o prêmio do público – o documentário Samba Riachão chega às telas das grandes capitais brasileiras. Nessa longa trajetória de espera, a fita recebeu outra láurea nada desprezível: foi eleito um dos dez melhores documentários musicais brasileiros de todos os tempos durante o Festival Internacional É Tudo Verdade 2004, realizado em São Paulo.
Primeira obra cinematográfica de fôlego do também músico e compositor Jorge Alfredo Guimarães, o filme foi rodado entre 2000 e 2001, quando Riachão gravava o disco Humanenochum. Algumas cenas dessas gravações foram incorporadas, como a de Vá morar com o diabo, com Caetano Veloso, e de Cada macaco no seu galho, com Tom Zé. Por essa obra, Riachão concorreu ao Grammy de melhor disco latino de samba em 2002.
Samba Riachão é um misto de perfil do sambista baiano Clementino Rodrigues, o Riachão, e de rememoração das origens do samba através de depoimentos de nomes ilustres da Bahia, sobretudo Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Carlinhos Brown.
É uma memória em tom de reivindicação: que o samba seja reconhecido como legítima criação baiana ou, no mínimo, que se dê coautoria ao Estado, em paralelo com o Rio de Janeiro. Afinal, os cariocas levaram a fama e o crédito pelo marco histórico – o samba (ou seria maxixe?) Pelo telefone (1916/17), de Donga e Mauro de Almeida, mas já havia samba tanto no Rio quanto na Bahia antes disso. E, se o Rio dessa época foi um caldeirão de grande alquimia cultural, muito disso se deveu à corrida dos negros recém-libertos à então capital, muitos deles oriundos da Bahia, como as famosas tias que congregavam essa população em suas casas.
Em meio a esse olhar sobre o passado, o documentário consegue fisgar momentos magistrais como a intervenção de Dorival Caymmi, o baiano que se consagrou no Rio de Janeiro, falando de sua terra natal. Além de esmiuçar em poucas palavras e sem rodeios o que fazer para compor um samba de sucesso, Caymmi, apenas com um fio de voz, emociona ao cantar o Samba rubro-negro, de Wilson Batista, crônica de um domingo de um tipo popular carioca.
A veia de cronista da cidade salta forte quando o foco do filme se fecha sobre seu personagem central. Riachão, hoje com 82 anos, é um exemplo típico de artista fiel às suas raízes. Seu universo de inspiração manteve-se o mesmo, a Salvador que ele percorre contando como surgiram suas músicas.
Suas letras são simples, retratam vivências cotidianas, das novidades da cidade (Baleia da Sé) ao resfriado pego na televisão (Pitada de tabaco): Eu segui para um programa/ Para uma apresentação/ O programa era animado/ Era de televisão/ Tudo lá era de quentura/ De abafar o coração/ Apanhei um resfriado/ Quase vou correr torrão/ Tomei pitada de tabaco/ Depois fiz assim/ Atchim, atchim.
Com sua inquietude alegre, fanfarrona, seus adereços de sambista – anéis, correntes, boné, toalhinha no ombro – Riachão é uma espécie de Grande Otelo da Bahia. Não há nele qualquer resquício de divisão entre o indivíduo e seu personagem. Prova disso é o espírito com que trabalhava como contínuo em uma repartição pública de Salvador: “Eu ia cantando e levando um documento em cada sala”, diz ele com jeito de pícaro.
Até o apelido de Clementino Rodrigues tem origem nessa sabedoria das ruas. Quando garoto, diz a lenda que era muito briguento e os mais velhos utilizavam um ditado popular ao apartar suas pendengas: “Você é algum riachão que não se possa atravessar?”.
Para o diretor Jorge Alfredo, autor do sucesso musical Rasta Pé (em parceria com Chico Evangelista, 1979), histórias como a de Riachão ainda há aos montes. “O cinema ainda deve muita coisa à música popular, ainda há muitas histórias por contar”. A nova safra de documentaristas, ao que parece, anda pelejando para tirar o atraso. (Texto Rubem Barros)
Ficha técnica: Samba Riachão, documentário, direção de Jorge Alfredo Guimarães, 2001. 86 minutos. Participações de Dorival Caymmi, Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Armandinho, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Dona Edith do Prato e Antônio Risério, entre outros.