A jabuticaba brasileira da linguagem

Foto: Guilherme Pupo

Para o escritor Cristovão Tezza, autor de A tirania do amor (Editora Todavia), a ambiguidade da linguagem, cultivada em nossos longos anos de escravidão, é uma característica genuinamente nacional. E está muito ligada à simulação, nesse caso à simulação de sermos civilizados

Em 2009, dois anos depois de lançar O filho eterno, seu romance de maior repercussão, o catarinense Cristovão Tezza tomou a decisão de abandonar sua longa carreira como professor universitário, iniciada nos anos 1980. Deixou seu posto na Universidade Federal do Paraná quando faltavam apenas 10 anos para se aposentar.

A decisão, no entanto, foi decorrência de uma certeza interior: era hora de ser escritor em tempo integral, o que seria impossível se continuasse na vida acadêmica, que tenderia a absorvê-lo cada vez mais.

Hoje, quase dez anos depois, Tezza não se arrependeu. De seus 16 romances, quatro foram escritos nestes últimos anos, além de um livro de contos e outro de ensaios, que condensa sete palestras feitas entre 2008 e 2017, Literatura à margem (Dublinense, 2018).

Começo com uma pergunta rememorativa: você julga ter sido um bom professor?

Difícil julgar em causa própria, mas penso que sim. Do ponto de vista prático, nunca faltei às aulas sem aviso prévio ou descumpri datas. Li e corrigi literalmente milhares de textos de alunos. Preparei meu próprio material didático (que, aliás, resultou em dois livros com a parceria do linguista Carlos Alberto Faraco, meu mestre de muitos anos: Prática de texto e Oficina de texto, editados pela Vozes). Criei um programa de leitura literária, paralelamente às aulas de língua portuguesa, que foi bem sucedido; até hoje vejo comentários no facebook de ex-alunos sobre a “lista de livros do professor Tezza”. Mas na virada do ano 2000, ao voltar do doutorado, percebi a passagem do tempo; a empatia com a novíssima “geração celular” já não foi a mesma. Comecei a me sentir cansado da sala de aula, e com o projeto acadêmico mais ou menos esgotado. A ficção começou a tomar conta da minha vida. Ou eu entraria no programa de pós-graduação (e não havia sentido em ficar fora dele), e então eu seria completamente absorvido pelo trabalho, ou sairia da universidade. Não dava mais para conciliar o escritor com o professor. Pedi demissão (faltavam dez anos para a aposentadoria), e não me arrependo. Fiz a coisa certa no momento certo.

Quais são os atributos essenciais de um bom professor?

Não há um modelo único de bom professor. A aprendizagem, que tem sempre mão dupla, é um processo variado, bastante idiossincrático, intuitivo. Digamos assim, genericamente: gostar do que faz, como em tudo na vida; uma boa formação acadêmica; equilíbrio entre empatia, alguma generosidade e distância formal. Método, organização. Enfim, estou elencando traços culturais relevantes em qualquer profissão ou trabalho, alguns princípios civilizadores. É preciso considerar também a faixa docente: em vários aspectos, as qualidades de um professor do ensino fundamental não serão exatamente as mesmas de um professor de pós, por exemplo.

Em O professor, vemos em meio à narrativa alguns dos vícios da vida universitária brasileira: criação de feudos, excessiva ideologização, burocratismo, vaidades, disputas de poder. O ambiente institucional tem afetado o ensino e a produção acadêmica brasileira?

Bem, aprendi nos meus anos acadêmicos como é difícil elaborar opiniões e teses sem uma boa base de dados, estatísticas, informações, sob critérios objetivos. O critério objetivo aqui são os índices de excelência da universidade brasileira, que, na média, são baixos e decepcionantes. Todos sentem que alguma coisa vai mal, e não somente pela clássica “falta de verbas”. Há um gigantismo burocrático no modelo da universidade pública brasileira, que nas últimas décadas foi inteira formatada quase que sob um delírio ideológico de reprodução do próprio Estado. Corporações sindicais de professores e funcionários acabam tendo um poder desequilibrado e desequilibrante do espírito e dos objetivos públicos funcionais da universidade. Há mesmo certos padrões civilizados básicos que foram ao chão: por exemplo, nas últimas eleições, uma comissão de reitores de universidades públicas e laicas, todos em exercício do cargo, foi a Brasília declarar apoio a um dos candidatos. O assustador é que, parece, ninguém achou que isso fosse eticamente inaceitável. Ao mesmo tempo, o desastre monumental do ensino médio brasileiro (e acho que o ensino médio é a tragédia maior da nossa educação e da sociedade brasileira, mais grave e mais danosa do que a própria crise do ensino superior) acabou jogando muito para baixo o padrão universitário. Pela minha experiência de professor, sei o quanto a qualidade do aluno que entra na universidade melhora o padrão do ensino. Penso que o modelo inteiro tem de ser radicalmente repensado. Quanto à vaidade, feudos acadêmicos, disputas de departamento, tudo isso são traços universais do ensino desde a academia de Platão. A questão realmente grave é estrutural: o que fazer para valorizar e potencializar de fato a inteligência acadêmica brasileira.

Que estruturas mudaria no ensino superior brasileiro, público e privado?

Sinceramente, não sei. Estou afastado da vida acadêmica já há quase dez anos. Imagino que haja muita gente boa pensando nisso. Olhando de fora, penso que uma descentralização do modelo permitiria, de fato, uma autonomia real das universidades públicas. Também acho que, pelo fracasso da utopia atual (o vínculo universal entre ensino, pesquisa e extensão), é preciso sim privilegiar centros de excelência, áreas específicas de atuação etc. O que é importante lembrar é que, de fato, o melhor da inteligência brasileira, num imenso leque de áreas, está na universidade. Fazê-la funcionar melhor, portanto, é crucial para o processo civilizador do país. E a questão do ensino superior está indissoluvelmente ligada à qualidade do ensino fundamental e do ensino médio.

Quanto o escritor Cristovão Tezza deve ao professor Cristovão Tezza? (Desconsiderando aqui o esteio econômico nos anos de docência…)

Bem, de fato a sobrevivência cotidiana foi fundamental para sustentar o escritor… Gosto de fantasiar que a universidade não influenciou em nada a minha literatura, uma ingratidão típica de escritor. Mas é claro que duas décadas em sala de aula, fazendo mestrado, doutorado, lendo e produzindo textos acadêmicos, tudo isso mexe com a produção literária. O difícil é localizar essa influência. Arrisco dois pontos: passei minha vida acadêmica lendo diariamente textos de estudantes de 18 a 22 anos de idade. Fui acompanhando o “contemporâneo absoluto”; só eu envelhecia. Acho que isso deixa marcas. O segundo ponto é, em certa medida, filosófico: entrei na universidade (tardiamente; fiz vestibular com 25 anos) com um espírito algo selvagem da contracultura, da vida alternativa, de um certo irracionalismo impulsivo e compulsivo. As primeiras aulas de linguística (devo isso ao mestre Faraco) subitamente começaram a me familiarizar com o que chamo de “linguagem da ciência”. Foi um choque “epistemológico”, digamos assim. Isso também deixou marcas e mexeu com as pretensões avulsas da minha cabeça então orgulhosa.

Tanto em O professor como em A tirania do amor vemos personagens portadores de teses que fazem leituras explicativas do país, seja por meio da linguagem ou da relação de cultura e eficácia econômica. Em tempos fragmentários, essas grandes sínteses ainda fazem sentido?

Explicações totalizantes não fazem sentido; no entanto tentamos, mal rompe a manhã, como diz o poeta. O Brasil sempre viveu sob a síndrome da autoexplicação: estamos permanentemente atrás de raízes, fundamentos, formações de origem, causas e culpas genéricas etc. Há fraturas demais em toda parte que precisam ser de algum modo interligadas para fazer sentido. Na ficção, apenas tento dar voz, em casos isolados, a esse desejo instintivo de síntese.

A tese de Therèse, de O professor, define as relações no Brasil como pautadas pela ironia, pelo não dito, pelo subentendido. Parece curioso, visto que uma das nossas matrizes, a portuguesa, é caracterizada pela literalidade absoluta. Em se concordando com Therèse, seria algo reativo?

Não havia pensando nesse contraste da ironia brasileira com a clássica literalidade lusitana, o que é verdade, e engraçado. Mas, nesse caso, acho que a razão da ambiguidade dos nossos subentendidos seria mesmo uma jabuticaba brasileira: desde o século 17, à medida que a escravidão foi formatando econômica e culturalmente, de uma forma esmagadora, a vida brasileira (e de um modo direto, imediato, dentro de casa, por assim dizer, ao contrário da vida na metrópole portuguesa), a linguagem cotidiana foi duplicando seus sentidos, porque o horror da escravidão precisava ser “naturalizado”. A urbanização teve um papel crucial nesse processo, que entre nós atingiu seu ponto máximo no século 19: brancos, negros e pardos, homens livres, escravizados, libertos, alforriados, todos convivendo cotidianamente quase que ombro a ombro, teriam na “dupla linguagem”, no subentendido, na máscara linguística, a simulação civilizatória, que pressionava cada vez mais em toda parte. Simular era uma condição de sobrevivência física e moral, e isso teria passado à “gramática da língua”, segundo Therèze. Não sei se a tese se sustenta (provavelmente haverá mais variáveis em jogo), mas a ideia me parece ficcionalmente interessante.

Nos dois livros há também uma enorme dificuldade nas relações entre jovens e adultos, sendo que os jovens parecem tender a um radicalismo carente de elementos para a leitura do mundo. Em Literatura à margem, você analisa esse fenômeno – de gerações de jovens mimados – como cíclico. É isso mesmo, ou estamos vivendo um momento de exacerbação nessa relação?

Imagino que a contracultura que se fermentou ao longo dos anos 1950, após a Segunda Guerra, e explodiu no célebre movimento de 1968, é a raiz fundamental do nosso tempo. O radicalismo juvenil é clássico: jovens somos meio incompletos, radicalmente sinceros, inseguros, às vezes desmiolados mesmo, e o peso da civilização e de seu controle, com a ajuda da própria biologia, vai nos amadurecendo e equilibrando. Mas esse processo universal de espírito juvenil de rompimento, uma marca tipicamente romântica, se exacerbou a partir dos anos 1960 em função de outras liberdades que entraram no cardápio civilizador para (felizmente) não mais sair dele: a independência das mulheres, a implosão do racismo de Estado, as urgências identitárias, a urbanização acelerada, a pauta dos direitos do indivíduo sobre a pressão social, tudo isso impulsionado, poucos anos depois, de forma exponencial, pelo advento do mundo digital e da internet. A passagem de um quadro cultural a outro nunca foi tão rápida e violenta como a que vivemos no presente. Processos que em outros tempos levariam literalmente um século para se consolidar, numa lenta substituição de padrões de comportamento, hoje parecem acontecer em pouquíssimos anos. Para entender o que está acontecendo — o que não é simples — talvez seja melhor recorrer a pensadores sociais de assimilação e transformação das culturas (o exemplo que me ocorre é Norbert Elias), do que simplesmente à mecânica das infraestruturas político-econômicas, que foi o forte do século 20 a partir do modelo marxista. Com um pouco de otimismo, eu diria que a tendência seria naturalmente alguma estabilidade; o que não podemos perder é a medida da civilização, porque na história humana absolutamente nada é garantido para sempre. É muito fácil regredir.

O Otávio de A tirania do amor consegue fazer operações complexas e sínteses matemáticas com facilidade, por meio das quais extrai sua compreensão da realidade. Como você enxerga esse crescente domínio da lógica de um mundo estruturado sobre grandes bases de dados e padrões daí decorrentes?

O caso do meu personagem é praticamente o de uma síndrome única: pessoas capazes de extraordinária habilidade matemática, num estalo de dedos. Ele tenta salvar sua vida pela paixão da razão, e de certa forma esta “matemática da vida” estrutura o meu romance. Mas, na vida real (como, aliás, o romance acaba por demonstrar por vias tortas), a lógica ou a matemática que movem a complexidade do mundo não são muito úteis para cuidar das paixões pessoais. Acho que todo mundo vive em boa parte por força do acaso e das emoções, esforçando-se entretanto por se manter equilibrado no fio da razão. Afinal, a espantosa complexidade operacional do mundo atual, tudo que se exige para que as coisas continuem minimamente funcionando, a máquina da lógica e da eficiência, entra em choque com nossa frágil cabeça. Mas não tenho medo da tecnologia — até porque, em todos os momentos históricos em que ela transforma os padrões do mundo, o processo costuma ser irrevogável. Continuo otimista: acho que a criação artística de distopias tecnológicas dominando a vida humana (um tema hoje bastante recorrente na literatura e no cinema) é, por si só, a defesa da condição humana, o nosso permanente sinal de alerta.

Em seus romances, você faz uso de diversas vozes e discursos, superpostos. Mesmo assim, consegue não deixar dúvidas para o leitor sobre qual delas está em foco. Quando sente ter atingido essa clareza em sua ficção e quais foram as maiores dificuldades para isso? E quanto é tributário de seu doutorado sobre Mikhail Bakhtin?

Um aspecto essencial do meu trabalho (e que contraria um certo imaginário do que é ser “escritor”) é que o meu processo de produção literária é muito mais instintivo do que cerebral. Aliás, a parte “racional” só entra no segundo tempo, por assim dizer, para aparar as arestas do texto. Isto é, eu nunca tive um “projeto estilístico” em mente, em nenhum momento da minha vida de escritor. Meus romances sempre começam por uma imagem avulsa, em seguida a imaginação de um enredo, e finalmente uma primeira frase que dará o tom narrativo e o seu ponto de vista. Como escrevi em minha autobiografia literária, O espírito da prosa (2012), penso que escrever ficção é “instituir um narrador”, criar um narrador que não se confunde com o autor. Isso posto, devo dizer que o instinto narrativo, no caso, não cai do céu, é claro — é fruto de uma vida inteira escrevendo, o que de certa forma fez a minha cabeça, um modo de ver o mundo; já é parte de mim, não algo pensado. Veja que eu não cheguei de um ponto vago em direção à clareza; meus romances sempre tiveram um perfil claro, com estruturas até convencionais. O estilo dos meus últimos romances, a partir de O fotógrafo (2004), foi avançando em uma direção mais ou menos imprevista.

Quanto a Bakhtin, eu diria que ele teve uma importância grande na minha vida acadêmica e na minha compreensão literária do ponto de vista do crítico e do ensaísta (afinal, frequentemente escrevo sobre literatura), mas jamais produzi uma página de ficção pensando nas categorias bakhtinianas. Aliás, não há nada mais chato do que um romance escrito para demonstrar uma tese; e, do mesmo modo, nada mais frágil do que uma tese escrita com o espírito da ficção. São apreensões da realidade bastante distintas.

Há, em O professor, certa recorrência da imagem “as palavras são como as moedas, só valem as correntes”. Poderíamos, principalmente tendo em conta que o personagem central é filólogo, interpretar que no tempo presente a filologia teria sido subjugada à condição de moeda de museu”, numa era de predominância da linguística?

É uma leitura possível, mas não pensei nisso. Afinal, a filologia pode ser considerada um capítulo da linguística. A expressão que equipara as palavras às moedas, uma imagem aliás belíssima, é do gramático Duarte Nunes de Leão, do século 16, na luta por afirmar a força da língua portuguesa contra a influência regressiva do latim. A frase entra no livro tanto como ilustração do conhecimento filológico do personagem Heliseu, como também um argumento para apresentar o tirocínio de Therèze. Ela faz o paralelo histórico com o mercantilismo então nascente (afinal, equiparar palavras com moedas é um gesto profano), o que surpreende o professor.

Você tem alguns personagens com aparição em vários livros, como a Beatriz dos romances A tradutora e Um erro emocional e de Beatriz (contos). Gestar um personagem é algo trabalhoso demais para que ele tenha vida por apenas um romance? A reutilização de alguma forma delimita a nova história a se contar?

Bem, eu sinto inveja dos autores de romances policiais, que escrevem sempre sobre o mesmo detetive, o que lhes poupa o trabalho de inventar um novo protagonista a cada romance. Durante um tempo, anos atrás, alimentei um sonho vago de escrever uma série de romances com figuras recorrentes, ao modo de Balzac ou Faulkner, mas nunca escrevemos o que queremos. Usei essa recorrência ficcional apenas em fragmentos: o personagem Juliano Pavollini, do romance homônimo de 1989, reaparece em O fantasma da infância (1994), ainda que de forma completamente autônoma; mas o lance biográfico se mantém. E Izolda, do Trapo (1988), faz uma ponta até relevante em A suavidade do vento (1991). Com Beatriz, a recorrência aconteceu meio por acidente. Ela fez uma aparição acidental num conto, e eu senti que poderia desenvolvê-la em outra história. Assim foram saindo os contos de Beatriz (2011). Em pouco tempo percebi que tinha uma personagem consistente que poderia trabalhar em outros livros. Publicado antes do livro de contos, Um erro emocional (2010) se tornou romance por acaso — era para ser uma narrativa curta, uma cena única, e ficou com 200 páginas. A tradutora (2016) nasceu a partir mesmo de Beatriz. Imaginei-a trabalhando como intérprete durante a Copa do Mundo. Tenho ainda o projeto de escrever um novo romance com ela; é uma personagem que me agrada muito, e também me exige. Com ela, sou obrigado a sair completamente de mim mesmo.

Sobre a sua última pergunta, imagino que não, exceto no caso de que o registro realista, que marcou a criação da personagem Beatriz, tenderá a se manter em uma nova história — como sempre acontece, você se torna escravo daquilo que criou.

Nas últimas décadas, assistimos a um processo de profissionalização maior do meio literário, com um entorno que ajuda um escritor a viver do ofício, como grandes eventos e produções audiovisuais, por exemplo. Como em tantas outras atividades criativas, hoje também se olha mais o que o leitor quer consumir, numa relação mercadológica. Considerando que ambas sempre coexistiram, é possível dizer que se antes prevalecia, na produção literária em si, a urgência de expressão hoje prevalece a urgência de sobrevivência?

É possível que sim, na medida em que se ampliaram bastante as possibilidades de profissionalização do escritor, o que inclui, também, escrever sob encomenda. E eventualmente direcionar a produção para esta ou aquela demanda. Bem, não tenho nada contra — basta lembrar que algumas obras-primas do século 19 foram obras folhetinescas de encomenda, como O jogador, de Dostoiévski, para citar apenas um exemplo. Mas hoje, até onde sei, esta é a absoluta exceção, não a regra. Sempre escrevi com relativa dificuldade; levo dois, três anos para amadurecer uma boa ideia e transformá-la numa narrativa. Jamais escrevi sob encomenda; escrever um romance, no meu caso, é um investimento pessoal intenso e visceral demais, e a ideia de que eu possa escrever ficção atendendo a demanda de um leitor específico me parece um milagre de eficiência, inalcançável para mim.

No Brasil, mesmo tendo duplicado o número de pessoas com curso superior na primeira década do século, continuamos lendo pouco e mal (no sentido da compreensão dos textos). Em Literatura à margem, você lembra que muito antes de havermos universalizado a escolaridade básica começamos a produzir audiovisuais de qualidade. No mesmo artigo, ressalta o fato de a internet ter tornado o contato com a escrita mais frequente. Mas a previsão é que, em 2020, vídeos sejam responsáveis por 90% do tráfego de dados na web. Como sair dessa sinuca de bico?

É um tanto assustador. Já fui bem mais otimista com o advento da internet, que, num primeiro momento, parecia o paraíso do texto escrito, o renascimento do potencial da literatura. Foi uma ilusão passageira, principalmente pela tal “portabilidade” do celular, que fragmentou a leitura e a escrita a um máximo de desconcentração e pulverização de sentidos. Não vejo saída senão pelo básico: uma boa creche, um bom ensino fundamental e médio universal, capaz de colocar o pequeno brasileiro na trilha da consistência da palavra escrita e da civilização que ela representa. Criar uma estrutura que possa dar conta desta façanha é um trabalho monumental e demorado, mas não impossível. Sei que é uma solução-chavão. Mas alguém conhece outra?

Na conferência Descaminhos da criação literária, você diz que “o ato de escrever conforma o escritor”, que a escrita é “uma tecnologia de transformação e criação da realidade”. O que me fez lembrar a definição da verdade de Nietzsche, que a caracteriza como “um exército móvel de metáforas”. Ambas de alguma forma pressupõem um exercício contínuo do livre-arbítrio, posto em xeque pela biologia calcada na análise de dados. Esse espaço está cada vez menor?

A biologia pode muito, mas não tudo — a condição humana continuará sendo uma condição moral, que não existe sem a possibilidade de escolha. O ato de escrever (que, de certa forma, repete e congela o ato cotidiano de representação do mundo comum a todas as pessoas, o tempo todo) é um modo de duplicar a realidade, construir uma maquete, uma espécie de limbo entre o gesto real e o seu momento futuro, na qual testamos (o escritor e o leitor) hipóteses de existência. Não acho que o espaço da liberdade pessoal esteja cada vez menor. Talvez ele esteja apenas mais desafiado, pela multiplicidade de estímulos simultâneos que vivemos hoje.

Acho que não erro muito se disser que duas das maiores motivações da leitura são o desejo de ver-se espelhado num outro imaginário – e, assim, entender mais a si próprio – e a vontade de compreender os sentimentos e a cultura do outro, para, na diferença, sentirmo-nos mais humanos. É um pouco assim que você enxerga a psicanálise quando diz que ela age como um narrador externo de nossas vidas, encontrando os sentidos que não vemos por nossa proximidade com as situações que nos angustiam?

Penso que sim. Todo olhar exige perspectiva, distância, uma duplicidade relativa. Ver a si mesmo é quase um paradoxo. Precisamos criar uma imagem própria, um duplo rebatido, para então nos vermos. A psicanálise cumpre esse papel alheio, e assumiu uma importância extraordinária num mundo laico, desde que Deus, historicamente o nosso grande narrador, deixou de ser percebido como uma variável totalizante para a visão de mundo moderna..

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Curtas

  •   Teve início em 29/06  a websérie “Caminhos do Devir – Volta às aulas pós-Covid-19”, com o debate sobre “Como aplicar a gestão de crises para planejar a volta às aulas de forma segura”. Os educadores e sócio-fundadores da Devir Projetos Educacionais, Luis Laurelli e Eloisa Ponzio, além do consultor Flávio Schmidt, consultor em gestão de crises do Grupo Trama Comunicação, analisaram as estratégias, cuidados e precauções para garantir uma volta às aulas que possa assegurar a saúde de professores e crianças e a tranquilidade das famílias. A conversa teve a mediação do editor do Trem das Letras, Rubem Barros. O encontro marcou também o lançamento do e-book “A Covid-19 nas escolas e o caminho para a retomada do presencial”, disponível para download, que pontua sobre os passos da retomada.  Texto publicado em 25/06/2020

  • O ano de 2020 marca o final do mandato de 12 dos 24 conselheiros do CNE, o Conselho Nacional de Educação. A primeira lista com sugestões de substitutos, deixada pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, provavelmente na correria a caminho do aeroporto, era composta principalmente por olavistas. Gerou resistência até dentro do próprio governo Bolsonaro. Diante do freio, puxado pelos militares, o ministro interino, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, está fazendo uma nova rodada de discussão para a escolha de outros nomes.  A Casa Civil será um dos principais interlocutores para definir a lista final. Se o padrão das escolhas continuar o mesmo de outras áreas, é provável que as escolas cívico-militares ganhem fôlego inaudito. Texto publicado em 25/06/2020

  • Além do Fundeb, é preciso ficar de olho na possível votação da Medida Provisória 934, que estabelece normas de excepcionalidade para a educação básica e superior em 2020. O relatório da deputada Luísa Canziani (PTB/PR) manteve entre as emendas que devem ir a plenário a liberação da obrigatoriedade do cumprimento das 800 horas para a educação infantil e de oferta da educação a distância na mesma etapa. A relatora deixa a decisão nas mãos dos gestores municipais. Além de contrariar todas as evidências científicas e pedagógicas que enfatizam os prejuízos da educação a distância para as crianças de até 5 anos, a medida pode significar a abertura da porteira para os grupos privados que atuam no negócio da educação a distância. Com as redes de ensino sufocadas pela falta de dinheiro, com aumento das despesas por causa da pandemia e queda na arrecadação de impostos de até 24%, impactando diretamente no Fundeb, principal fonte de recursos para a educação básica pública, a EAD pode ser vista por muitos como solução milagrosa. Mas será apenas um instrumento para cumprir a obrigação legal de oferta de ensino. E inadequado, no caso da educação infantil. É preciso ver o que falará mais alto, se o rigor burocrático ou o bom senso. Texto publicado em 25/06/2020

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