Foto: Raphael Schaller
Texto publicado em 09/03/2020
Erratas bíblicas
A Bíblia de King James, de 1611, teve duas edições originais em Oxford: uma, com cem erros tipográficos, levou à impressão de outra. Ocorre que o sujeito de uma frase do Livro de Rute (capítulo III, versículo 15) está no feminino na primeira impressão e no masculino, na seguinte. No primeiro estado: “He went into the citie”. No outro, “She…”.
Bisavó de Davi, Rute recebe conselhos da sogra Noemi. Seus maridos morreram e ela recebe orientação para seduzir Boaz, cujo matrimônio pode garantir o lugar da moabita Rute na família israelita que a acolheu. Embriagado, Boaz dorme. Ela deita a seu lado. Ele acorda e crê ter tido uma noite de prazer. Conclui que deve desposar Rute, mas diz que, por direito, outro parente pode reivindicar o casório. É quando ele anuncia que vai à cidade negociá-la. A frase no feminino leva à ideia impensável para a época de ter sido a própria Rute a fazer as tratativas.
A Bíblia já era o livro mais impresso (200 edições até 1600). Os tipos de metal eram sequenciados manualmente, um a um, letra a letra, espaço a espaço, sinal a sinal. Equívocos eram comuns. Em 1631, os editores Robert Barker e Martin Lucas lançaram uma Bíblia que suprimiu o “não” do 7o mandamento em Êxodo 20: 14. Saiu o oposto: “Thow shalt commit adultery”. Barker perdeu a licença de impressor, foi multado em 300 libras e morreu atrás das grades quinze anos depois. A edição foi condenada ao fogo para os fiéis não levarem o engano a sério.
Fonte: Rubens Borba de Moraes. O bibliófilo aprendiz. Rio de Janeiro: CEN, 1975.
A correção é a própria narrativa
Erratas podem encher de charme pitoresco a história de um livro.
O romance Flor de sangue, de um esquecido Valentim Magalhães (1859-1903), foi publicado pela editora francesa Laemmert em 1897, com a surrealista correção:
“à página 285, 4ª linha, em vez de – estourar os miolos – leia-se: cortar o pescoço”.
Para o livro, pouca gente liga, mas o erro conquistou os colecionadores.
Fonte: José Mindlin. Destaques da biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin. São Paulo: Edusp/Fapesp; Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2005: 10.
Trapalhadas tipográficas
Um erro tipográfico pode provocar tanta dificuldade para o entendimento de uma mensagem quanto um tropeço ortográfico. O escritor Euclides da Cunha (1866-1909) virou noites em 1902 para reparar 80 erros de impressão e de revisão nos 2.000 exemplares de seu Os sertões (no total, foram 160.000 correções a canivete e tinta nanquim).
Nada parece comparar-se, no entanto, ao deslize cometido pela livraria Garnier naquele mesmo ano, com a 2a edição de Poesias completas, de Machado de Assis (1839-1908). As obras da editora eram impressas na França. No prefácio, o tipógrafo teve a infelicidade cósmica de trocar a letra [e] por um [a] do verbo “cegar” no trecho “a tal extremo lhe cegára o juízo…” da 2ª linha da página VI. Assim, no mais-que-perfeito do indicativo, o resultado foi uma cagáda. Com [a] na sílaba inicial e acento no segundo [a].
Fonte: José Mindlin. Destaques da biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin. São Paulo: Edusp/Fapesp; Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2005: 10.