Fotos: Divulgação (as irmãs Guida, à direita, e Eurídice)
Texto publicado em 10/01/2020
Um embate constante entre o desejo e as possibilidades de transformá-lo em realidade, tendo muitas vezes de ceder à castração desse mesmo desejo ou à sua redução a limites ligados ao nível de entrega, às capacidades que ele requer e, talvez mais forte do que tudo, à contingência. Entre tantas, essa poderia ser uma das maneiras de se definir a vida e nossa luta constante para nos aproximarmos daquilo que pulsa na mente mas que muitas vezes não tem força ou condições concretas de virar a matéria real da vida.
É sobre isso que discorre a narrativa de A vida invisível, filme dirigido por Karim Aïnouz, vencedor da Mostra Un certain regard (Um certo olhar) do Festival de Cannes de 2019 e lançado no circuito brasileiro no final do ano passado. Baseado no livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, conta a história das irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice Gusmão (Carol Duarte), moradoras do bairro carioca de São Cristóvão nos anos 50 do século passado.
Como muitos imigrantes dos países latinos europeus, os pais das irmãs vieram ao Brasil tentar encontrar as oportunidades que não tiveram em sua terra. Com poucos recursos materiais e intelectuais, trabalharam duro, se apegaram a seus valores morais e religiosos e prosperaram, formando boa parte da classe média urbana que floresceu no século 20. Quiseram dar aos filhos as oportunidades que não tiveram, sobretudo em termos de condições materiais e de estudos.
O patriarca Gusmão é português, dono de padaria. Sua mulher é dona de casa. Guida e Eurídice vivem juntas para cima e para baixo, dividem seus sonhos. Guida é extrovertida, alegre. Aos 20 anos, quer amar, casar-se, desfrutar o gozo cotidiano do que pensa ser a vida a dois. Eurídice parece mais interiorizada. Sua habilidade ao piano é o orgulho da casa, e ela quer abrir as portas da vida com esse dom: estuda bastante e sonha ir a um conservatório na Áustria.
Desde a primeira sequência, o filme de Aïnouz sinaliza que esse mundo meio idílico das duas está perto de se partir. Uma se perde da outra num passeio em um morro à beira-mar, os chamados mútuos não as levam a se encontrar, como num presságio do que está por vir.
A história invisível de ambas é a narrativa dessa ruptura, que ocorrerá pouco tempo depois do passeio da cena inicial. Guida foge com um marinheiro grego, volta para casa grávida e solteira e é recepcionada por um pai rígido e que se sente desonrado. Ele a manda embora sem que a irmã saiba de sua volta e tem a conivência silenciosa de sua mulher.
Uma ignora o paradeiro real da outra. Sempre com o vazio interior da presença da irmã, ambas vão confrontando os temas que nos laceram durante a vida, sobretudo as mulheres: o condicionamento para a reprodução da ordem familiar e social; o cotejo entre a família de parentesco – aquela que, queiramos ou não, está impressa em nós – e a família eletiva, feita das identificações trazidas pela experiência de vida; e, sobretudo, a guerra surda entre o desejo, que em um dado momento parece significar a razão de viver, e a contingência, que vai desenhando o caminho da nossa estrada à medida que damos nossos passos.
Essa fricção é escancarada no contraste entre a bela trilha musical de Benedikt Schiefer, feita especialmente para o filme, e a luz tantas vezes sombria que dá um tom melancólico à imagem. Tudo isso resumido no olhar de Fernanda Montenegro, que em poucos minutos nos faz enxergar passado e presente, projeções de um e de outro, tudo dilatado na expressão de seu rosto.
Ficha Técnica
A vida invisível, de Karim Aïnouz (Brasil, 2019)
Roteiro: Murilo Hauser, com co-roteiro de Karim Aïnouz e Inés Bortagaray, baseado no romance A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha.
Com Carol Duarte, Julia Stockler, Gregorio Duvivier, Bárbara Santos, Flávia Gusmão, Antônio Fonseca, Flavio Bauraqui, Maria Manoella e participação especial de Fernanda Montenegro.
Música Original: Benedikt Schiefer