Foto: Gustavo Morita
Num país que historicamente dedica pouca atenção à educação da população e à universalização desse processo, não podemos nos dar ao luxo de não levar em conta os indícios e constatações trazidos à luz pela ciência. É o que se depreende das observações do neurocientista Fernando Mazzilli Louzada, mestre e doutor em psicologia pela USP, com pesquisas voltadas a neurociência e comportamento, e atualmente coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana da Universidade Federal do Paraná (UFPR), além de membro da Rede Nacional de Ciência para a Educação e do comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância.
Com trabalhos voltados aos comportamentos relativos ao sono dos adolescentes, a partir de análises que cruzam aspectos psicobiológicos, Louzada alerta para o fato de que as descobertas da neurociência têm de ser levadas mais em conta. E isso não está acontecendo, seja no debate sobre maioridade penal, seja nos formatos em que a escola está sendo oferecida.
“Se o Brasil já perdeu a chance de investir na primeira infância, se hoje temos muitos adolescentes que não tiveram oportunidades nos primeiros anos de vida, neste momento ainda podemos intervir e fazer muito por eles”, defende o pesquisador ao comentar a adoção de políticas públicas e as oportunidades de ação para melhorar a educação de nível médio.
Se hoje as descobertas relativas à primeira infância já são consensuais e a cada dia ganham mais corpo políticas públicas para essa etapa, falta estender esse olhar ao adolescente. Isso significaria, em primeiro lugar, não reduzir suas oportunidades com uma decisão como a da redução da maioridade penal, tendo em vista a comprovada imaturidade cerebral de jovens com menos de 21 anos.
Na conversa a seguir, realizada no início deste ano, numa calorenta tarde do verão paulistano, Louzada foi provocado a comentar tópicos bem mais amplos que sua área de especialidade. Apesar de classificar o resultado de nossa conversa como “uma grande miscelânea”, não fugiu ao desafio de emprestar sua visão para algumas questões centrais da educação brasileira. O que veio depois, com os primeiros meses da nova gestão ministerial, passa ao largo dos temas aqui discutidos.
O ensino médio tem sido apontado como ponto crítico da educação no Brasil. Na faixa etária correspondente, há um sério problema de violência contra os jovens e também praticada por eles, por vários motivos. Perdemos as referências para o trato com os adolescentes? Como vê o impacto de mudanças sociais que afetam esse público?
Trabalho e pesquiso essa faixa etária, mas a partir de um olhar mais biológico, por isso não sei se sou a pessoa mais adequada para responder. Hoje, parece que há menos clareza e um cenário muito mais complexo. Ao mesmo tempo, há muitas potenciais perspectivas dadas pelo mundo digital. Mas, concretamente, vejo o adolescente mais perdido, sem saber o que fazer.
Mais opções significam mais liberdade, e a liberdade às vezes é complicada, não?
Acho que o adolescente ainda não tem a capacidade de tomar decisões como se espera dele. Antigamente, era mais claro o caminho que a sociedade esperava que ele seguisse e também o caminho da contraposição, da rebeldia. Hoje, o adolescente não consegue nem saber o que é ser rebelde, o que é ser contra o status quo. Fumar maconha é ser rebelde? O que é se contrapor a essa lógica atual que, em geral, a gente começa a perceber na adolescência que tem muitas coisas que não fazem sentido? Está difícil até ser rebelde!
Tem pais que patrocinam a rebeldia dos filhos adolescentes…
Exatamente! E aí, para se contrapor, você vai ter de ser careta? Muitas vezes é isso que acontece. Os pais até ficam frustrados quando os filhos têm relacionamentos mais longos. Antigamente, achavam legal que a filha ou filho tivessem namoros estáveis. Agora, se incomodam. Outra percepção minha é que o mundo virtual e as redes sociais têm mudado a relação que os adolescentes têm com a vida. O que fazem os adolescentes da elite brasileira? Conheço vários filhos de amigos que nunca pegaram um ônibus, não conhecem o transporte público. Como você espera que tomem decisões ou sejam comprometidos com a sociedade? Impossível. Se olharmos para a periferia, para o adolescente das classes menos favorecidas, são vítimas de discriminação, da violência, têm dificuldades. Já a elite foi se isolando, seus adolescentes não têm ideia do mundo real.
O que as descobertas mais recentes sobre o desenvolvimento cerebral agregam a essa questão? Como isso pode ser aproveitado pelo mundo da educação?
As evidências nos dão segurança de que, realmente, o cérebro de um adolescente de 15, 16 anos não está maduro, e a tomada de decisões dele é muito diferente em relação à de um adulto amadurecido. Hoje conhecemos mais essa imaturidade cerebral e compreendemos melhor essa dificuldade que eles têm. Isso abre uma perspectiva fantástica. Essa maior plasticidade, essa capacidade maior de transformação do cérebro sinaliza que há uma possibilidade de intervenção, não só educacional, porém mais ampla do que isso. Conseguimos sensibilizar os gestores sobre a importância da primeira infância – a visão do cérebro e da plasticidade cerebral nos primeiros anos de vida já está consolidada e hoje se aposta mais na primeira infância, vista como investimento, não como gasto. Temos, da mesma forma, de olhar também para a adolescência, temos de ter políticas públicas, uma escola mais preocupada com oportunidades de transformação, com a construção da maturidade dentro dessa perspectiva. Mas não vejo essa possibilidade enquanto continuarmos com um ensino muito tecnicista, pensado para desenvolver habilidades unicamente voltadas às exigências do mercado de trabalho.
Como a gente explicaria esse fenômeno da formação cerebral do adolescente cientificamente?
Há vários eventos, vários processos associados ao amadurecimento cerebral. Se olharmos para o sistema nervoso, durante a gestação vão se formando os bilhões de neurônios. Esses neurônios começam a se conectar, a formar as sinapses, que têm muita relação com a plasticidade cerebral. Nos primeiros anos de vida, você reforça algumas conexões, enfraquece outras. Acreditava-se que era só isso. Hoje sabemos que o amadurecimento envolve outros processos. Por exemplo, a presença da mielina, aquela capinha que reveste uma parte do neurônio e cuja aquisição – o processo de mielinização – é fundamental para o funcionamento cerebral pleno, para aumentar a velocidade de transmissão do impulso nervoso. Ou seja, o cérebro maduro é um cérebro plenamente mielinizado. E hoje sabemos que há áreas em que a mielinização se completa só na vida adulta. E uma dessas áreas, que chamamos de pré-frontal, na parte da frente do encéfalo, é fundamental para a modulação do comportamento, para a tomada de decisão. São as áreas que fazem com que a gente incorpore o futuro na nossa vida. Gosto de olhar para o córtex pré-frontal como um módulo cerebral que nos permite avaliar as consequências das nossas atitudes de planejar, de tomar decisões sobre o que vale ou não a pena fazer. Isso muda a perspectiva. A criança mais jovem quer tudo no agora, não tem a capacidade de olhar para o futuro e fazer com que ele influencie seu comportamento.
Isso seria um equilíbrio maior entre razão e emoção.
A gente pode até criticar essa visão dualista. Tem vários autores, o [neurocientista português] António Damásio é um deles, que veem de forma crítica essa visão cartesiana da relação entre razão e emoção. Para falar nesse dualismo é preciso definir o que é razão, e essa é uma das coisas mais difíceis que existem. Dentro do que chamamos de razão está a capacidade de julgamento, de avaliação. E essa habilidade depende do amadurecimento do córtex pré-frontal. Então você pode dizer que, numa dada altura, a razão passa a ocupar mais o cenário das decisões e a modular mais o nosso comportamento.
Não são duas dimensões estanques, mas estão interpostas.
Sim, são indissociáveis. O Damásio, em O erro de Descartes [Cia. das Letras, 1996, esgotado], discute isso a partir de casos famosos na literatura, e mostra que não há como separar a razão da emoção e muito menos achar que você vai tomar uma decisão plenamente racional. A tua emoção envolve não só o teu cérebro, mas também o teu corpo, e cada vez que você pensa alguma coisa o teu corpo está junto. Ele mostra de uma maneira bonita que as nossas decisões nunca são plenamente racionais. Mas não significa dizer que a razão não é importante para tomar decisões. As decisões têm a ver com a nossa perspectiva futura das consequências do que estamos fazendo, isso modula a nossa decisão.
E é por essas razões que você tem se manifestado com relação à redução da maioridade penal, aventada pelo atual governo?
Fiquei pensando no que nós, da comunidade científica, podemos fazer diante dessas mudanças que estão ocorrendo no país. Uma delas é explicitar de maneira clara a nossa perspectiva. É a hora de fazer isso, contribuir para essas tomadas de decisão. Há problemas complexos, como esse da maioridade penal, que não vão ser resolvidos com uma canetada. Esse é um dos temas que está ou vai entrar em discussão e que tem de ter grande visibilidade.
O que o conhecimento científico nos diz é que, em termos de maturidade cerebral, a mudança, se houver, deveria ser para frente, e não para trás. Em vez de ir de 18 para 16 anos, teria de ir para 21 anos. Aí podem falar: “ah, mas tem outros aspectos”. Logicamente que sim. Quando você ouve o nosso ministro da Justiça dizer que uma pessoa de 15 anos sabe que é errado matar, é verdade, sabe. Talvez uma criança de oito também saiba. Mas a discussão é que, apesar de saber que é errado, o que o levou a cometer aquele crime, a maneira como ele lidou com aquela situação de conflito e tomou sua decisão, não é a maneira como um adulto lidaria. Por isso, deveríamos tratar de maneira diferente. Principalmente porque, em situações de conflito, as reações impulsivas aparecem mais no adolescente. Aí há uma dissonância, pois em termos cognitivos o adolescente já tem grande desenvolvimento. No ensino médio, aprende coisas complexas, que exigem grande capacidade de abstração. Há quem diga: “Um cara que entende o código genético, física quântica não sabe o que é errado?”. Sabe. Mas, na hora de uma situação de conflito, toma decisões equivocadas. É preciso mudar o foco da discussão. O mais relevante não é se vai ou não diminuir a idade penal, é a gente perceber que essa é uma idade crucial. Na perspectiva da neurociência, há uma oportunidade enorme de intervenções, é preciso aumentar o investimento em políticas públicas para a adolescência. Temos de mostrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é fundamental em termos de proteção. Se o Brasil já perdeu a chance de investir na primeira infância, se hoje temos muitos adolescentes que não tiveram oportunidades nos primeiros anos de vida, neste momento ainda podemos intervir e fazer muito por eles. Não só nas instituições para menores infratores, mas de maneira mais ampla. Claro, sem deixar de apoiar essas instituições de forma efetiva.
Sem contar que, se jogarmos esses adolescentes em uma cadeia para adultos, o problema será agravado, e não minorado.
É preciso apostar que nessa faixa etária ainda há uma possibilidade enorme de mudança. As pessoas acham que há algo inato de maldade, violência, agressividade, características irreversíveis. É claro que não podemos ser irresponsáveis, mas não podemos desistir desses adolescentes. Colocar alguém de 16 anos ou 17 anos na prisão é desistir desse alguém, a possibilidade de intervenção se perde. Precisamos aprofundar a reflexão e o debate, e não deixar isso virar briga de torcida.
No livro Homo Deus [Cia. das Letras, 2016], o historiador Yuval Noah Harari menciona a visão da biotecnologia de que somos um conjunto de sistemas e que, na verdade, muitos pesquisadores acham que o livre-arbítrio não existe…
Não dá para pensar em 8 ou 80, sim ou não, mas talvez o nosso livre-arbítrio seja menor do que a gente imagina. Temos a ilusão de que estamos com a plena capacidade de tomar as nossas decisões, como se isso fosse completamente independente do nosso corpo e inclusive do nosso passado, da nossa história como espécie, da humanidade, e da nossa história individual. Tudo isso está incorporado. Mas, sim, você tem o livre-arbítrio em determinada dimensão. Existe, mas não tão pleno como alguns imaginam. São interessantes os experimentos que mostram que, em alguns casos, quando você acha que toma uma decisão racionalmente, ela já estava tomada pelo encéfalo antes de você ter consciência disso. É uma mostra de que existe uma certa ilusão de consciência. Às vezes seu corpo tomou uma decisão e sua consciência só foi informada disso depois.
Um dos caminhos mais apontados como solução para resolver os problemas de aprendizagem são as inteligências socioemocionais. Como você vê essa ideia? A ciência corrobora essa proposta? Ela não traz, com nova roupagem, conceitos já existentes, como no caso da resiliência, que poderia ser associada à noção de autodisciplina?
Concordo, é interessante esse olhar. Talvez realmente não haja nada de muito novo, mas é uma reorganização e uma sinalização da necessidade de uma mudança de rumo. Nas últimas décadas, houve uma preocupação muito grande ligada ao desenvolvimento das habilidades que chamamos de cognitivas, do pensamento lógico-matemático. Aí começaram a surgir evidências de que seria interessante olhar para outros aspectos do desenvolvimento. Mas não é nada de novo, é verdade. Tem alguns nomes que pegam mais do que outros. Habilidades socioemocionais foi algo que conseguiu se difundir e fazer incorporar ao vocabulário e ao discurso das escolas. Não acho ruim, chama a atenção para a necessidade de olhar para um desenvolvimento mais pleno. Se você foca apenas o desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático, o QI tradicional, a inteligência geral, isso talvez crie deformações e problemas. A armadilha em que não temos de cair é começar a criar disciplinas específicas. Temos de ter no cenário de aprendizagem os objetivos de tais e tais atividades desenvolvidas. Tenho dúvida, por exemplo, de que é possível ensinar ética por meio de uma disciplina específica. Como você aprende a ter persistência? É enfrentando situações nas quais você aprende a ter persistência…
O segredo está no processo…
Exatamente. Cabe ao educador ter ideia disso e de quais são os desafios mais adequados àquela faixa etária. Um desafio que vai muito além da capacidade do aluno não serve para nada. E, se não for motivador, não mobilizar, também não. Mas não vejo como dar aula de resiliência.
São dimensões educacionais que foram sendo esquecidas em prol de uma visão mais instrucional, não formativa.
Em termos científicos, já surgem muitas evidências de que essas habilidades estão associadas a desfechos favoráveis, isso inclusive aqui no Brasil. O desafio é como intervir, mas existem evidências científicas de que, se você pegar crianças que têm mais resiliência, mais abertas a experiências, elas têm maior chance de obter desfechos favoráveis em termos acadêmicos, profissionais. A questão é como fazer isso. Mas os dados mostram que uma coisa está associada à outra.
A busca por indicadores, coisas palpáveis numericamente não está exagerada? Não há questões mais próximas ao bom senso do que a respostas numéricas?
Quando você pega estudos feitos por economistas, que gostam de usar dados quantitativos, eles são fundamentais para nortear políticas públicas. Qual a crítica que muitos pedagogos fazem a essa perspectiva? A de que há uma propensão a quantificar tudo, que o ser humano é muito mais do que números etc. É óbvio, mas uma coisa é falar da relação entre indivíduos, de cada aluno com o professor, onde entra o bom senso, a flexibilidade. Os números são fundamentais para sinalizar, não para resolver o problema de um indivíduo. Na saúde pública também é assim. Na educação, você pode mostrar quais os melhores rumos gerais de políticas educacionais, o que é muito diferente de ter uma atenção individual para algo. Às vezes, as críticas confundem isso, e alguns educadores tentam destruir a importância desses indicadores como se não servissem para nada. Ao mesmo tempo, isso não pode ser usado para tratar casos individuais. O desafio é ajustar esses dados às políticas.
Mas há casos em que as políticas são todas desenhadas a partir de avaliações externas, inclusive os conteúdos que definem a relação entre aluno e professor. É uma régua única para todos, sendo que há problemas nem sempre educacionais.
Aí entra a orientação educacional, o trabalho de personalizar um pouco. Mas, num país como o Brasil, alguma coisa mais macro tem de ser feita. O que a gente não faz é entender melhor as boas experiências. O Ideb, por exemplo, não estamos valorizando o que fazem os melhores, não estamos vendo o que eles fazem que pode ser aplicado em outros estados e municípios. Não podemos avaliar só por avaliar.
E qual papel os dispositivos eletrônicos têm desempenhado em termos de modificação das relações entre crianças e jovens? Eles estão mudando algum padrão cognitivo?
Temos muitos resultados já, mas não sei se eles nos permitem fazer generalizações, pois são controversos. Depende da metodologia de estudo, do recorte utilizado. Mas já temos indicativos. Uma coisa interessante que alguns estudos mostram é a consolidação disso que os pesquisadores chamam de memória externa. Um exemplo disso é o Google. Ao contrário de antigamente, quando nos preocupávamos em saber o quê, quantidades, nomes, informações, agora o mais importante é saber como e onde encontrar essa informação, que é o que os jovens fazem hoje. A gente tem de aproveitar o espaço que essa memória externa possibilita. Agora, não temos conhecimento sobre mudança de configuração cerebral, até porque não conhecemos o “antes”, pois as técnicas de neuroimagem são recentes. Você consegue até comparar algumas coisas, como a conectividade cerebral de crianças diagnosticadas com TDAH, autismo etc., consegue ver diferenças. O que não é possível é ver o que mudou antes ou depois do advento das tecnologias digitais, pois não tínhamos essa técnica disponível. De qualquer forma, há evidências de que o uso de dispositivos digitais muda o tamanho, a estrutura cerebral em algumas áreas.
De que forma?
Depende da área. E para mais não significa que seja bom, ou para menos não significa que seja ruim. A discussão ainda é essa questão da causalidade. Avalia-se, por exemplo, que quem tem áreas como o córtex cingulado maiores é menos propenso a passar mais tempo usando os dispositivos digitais. Porém, é preciso ter estudos longitudinais mais consistentes. Mas o fato é que existem estudos mostrando associação entre alterações na estrutura e no funcionamento cerebral e o uso de dispositivos digitais. Em geral, com o consumo excessivo. Tudo indica que mais uso tem a ver com menor capacidade atencional e maior impulsividade. Se voltarmos lá para a questão do córtex pré-frontal, estamos autorizados a pensar que os dispositivos digitais não estão contribuindo para o seu amadurecimento.
Nessa faixa etária…
Sim. O uso dos dispositivos é um processo imediatista… Se um dispositivo faz com que você não precise esperar, é de se imaginar que não esteja contribuindo para o desenvolvimento da persistência. Não gosto de demonizar os dispositivos digitais, mas temos de avaliar. Se estamos preocupados com esse fator, vamos fazer um uso mais moderado. Talvez os computadores antigos ajudassem nesse sentido (risos), pois a gente era acostumado a esperar para entrar, para inicializar, para salvar… Agora, não. E a gente ficou assim também.
Outra coisa que tem sido muito mencionada relacionada aos dispositivos são os casos de depressão e suicídio.
Em relação à depressão, o que está muito claro – só não se sabe exatamente onde começa essa espiral – é que a depressão tem a ver com uma menor interação social. Ou o adolescente deixa de interagir porque está deprimido, ou está deprimido porque não está interagindo. Dessa forma, se expõe menos aos sinais sociais, incluindo o claro e o escuro, que é mais importante do que se imagina, a exposição ao dia e à noite. O fato é que essa redução da interação social acompanha a depressão. Não é descabido pensar que isso pode estar contribuindo. Se pensarmos que, adicionalmente, a configuração cerebral do adolescente faz com que ele seja muito mais sensível aos sinais sociais, inclusive ao sofrimento alheio ou a questões associadas ao próprio sofrimento, não surpreende que sejam os primeiros a manifestar isso dessa maneira, com suicídios ou tentativas de suicídio.
E como fica a educação a distância nessa faixa etária?
Pode trazer benefícios, mas tem de haver um limite claro. Fala-se muito de EAD no ensino superior, em que há cursos mais técnicos, em que você aprende uma determinada disciplina, às vezes não tão bem, mas aprende. Mas não se pode desprezar a interação social. Se você aposta que a escola pode ajudar o aluno, que os professores, orientadores educacionais etc. são capazes de ajudar o aluno a enfrentar as dificuldades, qual o sentido de tirar o aluno da escola, subtraí-lo do contato com esses profissionais? Obviamente, haverá mais dificuldade de detectar problemas e intervir. É uma insanidade pensar num ensino médio totalmente a distância.
A BNCC aprovou 20% nos itinerários normais e 30% no médio profissional…
Mas a preocupação é que, com isso, se abra uma porteira. Se funcionar, com governos com dificuldade de financiamento, de acesso às regiões mais distantes dos estados, daqui a pouco se permite 50%. Essa é minha preocupação.
Para quem está fazendo uma primeira graduação, com 18, 20 anos, a interação é quase tão importante quanto, não?
Também. Não podemos pensar que desde os 18 anos os jovens já estejam formados. Por outro lado, o que sempre temos visto nas nossas universidades é que as aulas expositivas começam a se mostrar descartáveis. O modelo tradicional de transmissão de um conjunto de conceitos ou ideias pode ser bem feito por meio digital. Quando preparo uma aula, sempre penso nas centenas de aulas que existem sobre esse assunto na internet. Será que não tem várias melhores do que a minha? Claro que sim!
Será mesmo? São raros os exemplos no YouTube em que a aula usa recursos diferentes daqueles que são usados presencialmente…
A vantagem é que no computador o cara acelera a velocidade (risos)… Precisamos ter mais clareza do que pode e não pode ser substituído. Que tipo de habilidade só se desenvolve pela interação e o que é plausível, aceitável a distância. Agora o modelo de simplesmente assistir a vídeos funciona menos, você precisa ter outras ferramentas de interação com o aluno. Por outro lado, não podemos desprezar essa alternativa, ela pode significar uma democratização.
Outra questão que influencia a relação dos adolescentes com a escola é o sono. Você sempre fala da questão dos horários, que poderiam ser modificados com a entrada mais tarde. Mas, além disso, não tem também um problema social, mais geral, de que estamos dormindo mal, com o sono muito entrecortado?
Você olha para a sociedade atual e há uma visão quase hegemônica de que o sono original, natural, foi se perdendo, principalmente com a industrialização, a energia elétrica, a sociedade 24 horas. Há muitas evidências disso. Temos feito uma reflexão, eu e outros colegas pesquisadores, que é a seguinte: o que é o sono original, natural? Você pode falar “ah, é um sono noturno, de 8 horas, que não seja interrompido”. Essa é a ideia que se tem de um sono saudável. Mas quando você começa a ver outros dados, como o de aborígenes da África, alguns dados da América do Sul, você vê que realmente é verdade que a energia elétrica faz com que as pessoas durmam menos e mais tarde. Por outro lado, você vê que o sono dessas outras populações também não é de oito horas seguidas. Por quê? Talvez porque não seja necessário. Se você não tem um compromisso durante o dia, qual o problema de dormir da meia-noite às 4h, acordar, e dormir de novo às 6h30? Isso é o que muitos insones vivem, só que 6h30 é a hora que muita gente tem de levantar. E, se pudesse, dormiria até umas 9h ou 10h. Esse sono ideal é o ideal para a nossa sociedade, para quem tem de acordar e estar pronto para produzir. O fato é que, diante de tudo isso, se olharmos para as crianças e adolescentes, eles estão dormindo menos do que precisam. Por quê? Se o adolescente pudesse acordar mais tarde, não haveria problema de ele dormir às 2h da manhã. Por isso insistimos nesse atraso no horário [na entrada da escola]. Tem um estudo de aborígenes mostrando que eles não dormem todos no mesmo horário, alguns dormem mais cedo, outros mais tarde. Isso está ligado à disposição genética e talvez à necessidade de sempre ter alguém acordado para proteger o grupo. Os ajustes e a expressão do sono mudam muito em função das demandas ambientais. O sono é fundamental para o processamento da informação, para a concentração da memória, a geração de ideias, a criatividade. Os adolescentes estão dormindo menos do que supostamente precisariam e as crianças também. Há vários ladrões de sono, mas o principal é o horário escolar.
E em relação aos sonhos, há alguma nova descoberta?
Não é um tema que tenho investigado especificamente em nosso laboratório. Mas uma das áreas em que a atividade cerebral mais muda quando você compara a vigília e o sono é a pré-frontal. As áreas de processamento visual continuam ativas quando você está dormindo, mas as áreas pré-frontais não estão tão ativas. E isso parece essencial para o próprio funcionamento pré-frontal, porque quando você se priva de sono, o pré-frontal fica menos funcional, e aí sua atenção, sua capacidade de tomar decisões, fica comprometida. A privação de sono também contribui para transtornos afetivos e para depressão, porque você está com a capacidade mais reduzida de lidar com isso, fica mais impulsivo. Não é só em termos cognitivos que temos de nos preocupar com o sono e os sonhos, mas também em termos de regulação emocional.
Hoje se fala muito que as situações de ensino-aprendizagem devem trazer coisas concretas para os jovens, que façam sentido para eles. Mas o quanto a capacidade de abstração não fica prejudicada quando se lida só com essas situações?
Penso bastante nisso, pois quando se pergunta por que precisamos aprender detalhes do código genético, por exemplo, para que isso serve, vejo como um exercício belíssimo de abstração. Temos exemplos disso em todas as disciplinas. Na matemática… exercícios de abstração que ampliam a nossa capacidade de pensar. Há coisas que precisamos aprender pela própria beleza daquela construção [do pensamento].
E por que as rejeitamos?
Talvez a maneira como somos obrigados a pensar naquilo não seja a melhor. Mas como não pensar na beleza da física quântica ou de outras disciplinas? São construções que são exercícios de abstração, que ampliam a nossa capacidade, inclusive do ponto de vista cerebral, porque obrigam a formar conexões que antes não eram realizadas. Em palestras, brinco e pergunto: “se eu falo banco, você pensa no quê?”. No banco de sentar, no banco de dinheiro. Se eu falo banco de dados, as pessoas pensam em computador, coisas do gênero. “Mas vocês nunca pensariam em um banco com dados sentados sobre ele.” E explico que essa relação é, à primeira vista, non sense, inútil, mas pode se tornar algo com sentido com o tempo. Isso tem a ver com a capacidade criativa, com a arte. E com os sonhos, quando não temos o pré-frontal falando “isso não pode, isso não faz sentido”. Nosso pré-frontal inibe essas possibilidades durante a vigília de conexões, pois impõe uma censura que busca o normal, o aceitável. Necessária, para se ter uma ideia do que é real. Mas a escola tem de, em alguns momentos, estimular nossa capacidade de abstrair e estabelecer novas relações. O que nos falta é um mapa conceitual mais claro, mais amplo, que nos permita perceber que muitas coisas estão relacionadas e possamos mostrar essas conexões para os alunos. Eu era muito mais crítico em relação a esse conhecimento dito inútil ou desnecessário e mudei de ponto de vista. Hoje, acho que o sentido de ensinar essas coisas está na própria beleza de como esses raciocínios são construídos.
Pela trajetória do pensamento, pelo que incorporamos em meio a ele, não? Muitas coisas vão ser esquecidas, mas o caminho até elas é de suma importância.
Quando leio um livro, talvez eu esqueça a maior parte da história. Se você me pedir para contar a história de Crime e castigo, de [Fiódor] Dostoiévski (1821-1881), um dos livros que mais marcaram a minha vida, não vou saber detalhes. Não lembro nem o nome do personagem, um nome russo complicado [Raskólnikov]. Mas o livro me marcou, me proporcionou reflexões profundas, e isso é o importante. O que é preciso ver é se a educação está conseguindo proporcionar isso. Talvez você não lembre do código genético em detalhes, mas deve saber que ele possibilita manipulações, alterações, maior conhecimento e as suas aplicações. Se você guardou isso, é o essencial. E a lógica, a maneira de construir, de pensar, de organizar, algo que cada disciplina tem a sua, também é importante. Qual é a lógica da matemática? E da física, da química?
E quando a gente junta disciplinas em áreas, como propõe a nova Base?
Isso faz sentido em termos mais básicos. Mas se você quiser um mínimo aprofundamento conceitual, não tem como. Mesmo no nível médio é preciso ter essa separação. Talvez possa haver mais flexibilidade de carga horária e pensar em priorização. Talvez a gente se exceda no seguinte sentido: você aprende física, mecânica, aí aprende a lógica do movimento dos corpos. Mas descobre que, para poder resolver um exercício do vestibular, precisa fazer 200 exercícios para automatizar esse processo. Aí você dedica um tempo enorme. Será que isso é necessário? Não é tão necessário se você não quer fazer física. Mas saber aspectos básicos da construção do conhecimento da humanidade é necessário. A questão é o que priorizar. É a mesma coisa na universidade. O conhecimento acumulado sobre determinada disciplina dobra a cada 3 ou 5 anos. Como você vai acumular todo o conhecimento científico com a mesma carga horária? É preciso sempre priorizar, por isso a formação de professores precisa ser cada vez melhor. Só quem tem noção clara dos conceitos da disciplina consegue fazer essa priorização. Caso contrário, vai ensinar pedaços, fragmentos de uma disciplina de uma maneira que não fará sentido.
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