Foto: Arquivo/Feusp
Texto publicado em 24/04/2020
A educação pública brasileira precisa, de uma vez por todas, entrar na era da internet. Caso não o faça, poderá ficar alijada dos processos de ponta da sociedade brasileira por incapacidade de se comunicar com as novas gerações por meio dos atuais recursos tecnológicos. “As escolas públicas vão ter de entrar nessa lógica, a não ser que queiram ficar fora da história”, adverte Carlota Reis Boto, professora de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E o alerta vale também para as universidades públicas, que podem deixar de ser objeto do desejo dos estudantes mais qualificados caso não se reciclem sob esse ponto de vista.
Esse é apenas um dos aspectos que a crise do coronavírus está trazendo à tona, ao lado de todas as incertezas que exigem uma percepção mais aguçada por parte dos educadores neste momento, como reflete a docente, organizadora de Clássicos do pensamento pedagógico: olhares entrecruzados (Edufu, 2019) e autora de A liturgia escolar na Idade Moderna (Papirus, 2017). Um dos aspectos que precisa dessa sensibilidade, seja durante as aulas remotas ou na volta das presenciais, é o currículo, que deverá ser impactado pela urgência de se destrinchar a inusitada experiência de viver sob um vírus que parou o mundo.
Atualmente coordenando um projeto de pesquisa e classificação das obras da Biblioteca Paulo Bourroul, acervo que por anos pertenceu à antiga Biblioteca do Colégio Caetano de Campos, a professora e também historiadora da educação não viu com bons olhos as Diretrizes Curriculares para Formação Inicial e Continuada. Aprovadas no final do ano passado pelo Conselho Nacional de Educação e já homologadas pelo dublê de ministro Abraham Weintraub, as diretrizes privilegiam o ensino de práticas docentes, mas, segundo Reis Boto, estão assentadas em um discurso sedutor, porém de “muito pouca profundidade teórica”.
Na entrevista a seguir, ela também discorre sobre formação a distância, homeschooling, tensões entre família e escola e críticas, a seu ver injustas, à universidade pública em sua relação com a sociedade.
Começo perguntando se você lembra algo de comparável, em algum nível, a essa crise que estamos vivendo?
Não, nada que se compare. Talvez a crise de 29, mas não sei como seu impacto foi vivido nas escolas. A única coisa mais parecida com isso de que me lembro, mas em escala bem menor, foi aquele surto de meningite de 1974. Mas foi de outra proporção, as aulas pararam uma ou duas semanas.
“A escola, pelo coronavírus, finalmente chegou ao tempo da computação e da internet.” Você fez esta provocação em recente artigo no Jornal da USP (A educação e a escola em tempos de coronavírus). Até que ponto quem ainda não tinha chegado a esse tempo realmente chegou? O que já é possível ver que realmente mudou?
É, dei uma provocada. Acho que haverá diferença, sim. Quando eu escrevi isso, pensei até na universidade. A própria universidade não se vale dos recursos da internet. Não o suficiente para pensar no uso do contato a distância com os alunos para algum exercício eventual. Não para formar em Educação a distância, não é disso que estou falando. Agora, se pensarmos nas escolas públicas, que sei que hoje não têm condições, se não houver um investimento nesse sentido, o gap, a distância entre as escolas públicas e a rede privada vai se intensificar de maneira brutal. A rede privada, que também não estava informatizada nesse sentido, está aprendendo a ser. E as escolas públicas vão ter de entrar nessa lógica, a não ser que queiram ficar fora da história.
Esse problema também afeta as universidades públicas, que correm o risco de verem diminuir muito da primazia de serem disputadas pelos melhores alunos em função de não se modernizarem tecnologicamente, não?
Você tem razão. É por esse motivo que o esforço da reitoria da USP vai nessa direção, de incentivar que os professores superem essas barreiras. É importante dizer que os professores da minha geração têm dificuldade com essas ferramentas. Não é tão fácil para mim, por exemplo, entrar em todas essas plataformas em que os alunos transitam com tanta facilidade. Somos de uma geração que teve de se familiarizar na marra neste momento.
Muitas coisas feitas de forma virtual parecem quase que estritamente ligadas à dimensão instrucional da educação, que é aquela mais visível e cobrada pela sociedade. Será que a excessiva valorização desse aspecto não prejudica um sentido mais amplo, de desenvolver os sujeitos tratando ciência e ética de forma integrada?
É verdade. É preciso que fique bem claro que a gente não propõe que haja substituição da educação presencial pela educação a distância. A EAD não dá a possibilidade dessa formação mais integral do sujeito no sentido ético, no sentido até civilizatório. Mas, como se diz, é o que temos para este momento. Vamos nos valer das ferramentas da internet inclusive para discutir temas da ética que são contemporâneos, como a questão de como lidar com a pandemia, ou com os espaços públicos, com o isolamento. É possível fazer essa interação e esse acolhimento dos alunos também de forma virtual. E é importante. Não é apenas a transmissão de conteúdos que é facultada por essas ferramentas. Claro que não é possível fazer a mesma coisa, não vai ser o mesmo resultado que teríamos trabalhando face a face. Mas não há alternativa. Há estudos que indicam que o vírus pode só ser efetivamente erradicado em 2022, o que torna a coisa assustadora. A tendência seria termos períodos interrompidos de quarentenas, várias quarentenas. Como lidar com a educação sem essas ferramentas? É quase impossível.
E, desse ponto de vista, será que não deveria haver uma flexibilização do currículo? Quando você tem um fenômeno como esse acontecendo, isso te propicia diversos ganchos para tratar de temas que talvez não estejam programados. Enquanto a pandemia mexe com a vida de todo mundo, há muita gente preocupada com hora-aula, dias letivos…
Sem dúvida. Eu diria que um dos maiores erros da educação é a fetichização do currículo. Nesta época e em qualquer época. É a ideia de que o currículo é quase que inamovível, como se fosse uma bíblia, uma doutrina, que não pudesse ser alterada nunca. O currículo é sempre uma seleção, e essa seleção é passível de modificações. Essa ideia de que eu tenho de dar 15 aulas sequenciais que vão percorrer um conteúdo que vai da Grécia à Segunda Guerra Mundial, por exemplo, é discutível. Esse conteúdo pode ser recortado de outra maneira, posso me valer dele com outras sequências didáticas, com outra aproximação e, neste momento, é preciso que isso seja feito. Porque o mesmo currículo talvez não se aplique a uma comunicação remota. A aula remota provavelmente vai ser mais breve e terá de se utilizar de outros recursos para capturar a atenção do aluno. Nesse sentido, é preciso que a gente atente para as questões contemporâneas. Não dá para ter um vírus desse na nossa frente e falar da divisão das células como se estivéssemos no ensino tradicional.
Inclusive para pensarmos na inclusão do aluno nas questões contemporâneas e quem sabe até na busca de soluções de convívio. Ele não pode ficar alijado do que está ocorrendo, não?
Exatamente, pois aí a escola deixa de fazer sentido na vida dele, o que é pior.
A crise gera enorme instabilidade em relação ao futuro próximo, pois há muita margem de erro nas previsões, em especial num país como o Brasil, que testa pouco e é gritantemente desigual. O que a escola e os professores devem levar em conta ao lidar com essa instabilidade?
Vivemos num momento de plena incerteza. Falei dessa pesquisa [estudo mencionado pelo biólogo e youtuber Atila Iamarino, que prevê isolamento social intermitente para os próximos dois anos], mas também tenho muitas dúvidas, pois os dados aparentemente são muito díspares, cada um fala uma coisa, a gente não sabe no que acreditar. Agora, essa incerteza tem de se transformar numa potência educativa. É o momento de se colocar em questão as certezas presumidas que embasavam muitas ou algumas das práticas que eram utilizadas com os alunos tradicionalmente. É aquela história antiga de transformar a crise numa oportunidade, de tal maneira que o aluno possa sentir que a história se acelerou e que ele participa disso e pode de alguma maneira interferir como sujeito histórico. Não sei como concretizar isso diretamente, mas penso que o currículo tem de mobilizar esse sentimento de pertença a um tempo, um tempo que se agilizou.
Muitas famílias fizeram um mea culpa em relação aos professores neste período ao se verem no dever de ensinar os filhos e não se sentirem capazes. Mas houve pais que ultrapassaram fronteiras e invadiram as aulas dos filhos para reclamar dos professores. É hora de repensar o papel da família?
Como você sabe, a minha área de pesquisa é a história da educação. Do meu ponto de vista, essa parceria entre família e escola é uma grande farsa, que nunca existiu como se pretende. A ideia que costuma ser veiculada é que a família já foi parceira da escola e que hoje a família não é mais uma parceira da escola. Na minha tese de doutorado, o que eu vi no século 19 é completamente diferente. A família e a escola, de certo modo, disputam um espaço pedagógico, disputam representações de mundo num quadro que envolve as crianças. E é dessa disputa que surge um processo pedagógico, tanto da escola, de um lado, quanto da família, de outro. De certa maneira, é como se a família houvesse delegado à escola a função da formação letrada. E a escola cobrasse da família, hoje e sempre, uma formação de civilidade, de cordialidade, de urbanidade. Essa relação sempre foi tensa. O que vemos hoje é que as famílias tiveram de se haver com esse outro campo que não era o delas, da formação letrada. Isso é um risco. Um risco de as famílias gostarem disso e de termos uma invasão do homeschooling, a educação domiciliar, que já era uma tendência, aparentemente pouco desenvolvida no Brasil, mas já com uma abertura por parte do Supremo Tribunal Federal, algo que talvez agora se intensifique. Isso em função desses pais que eventualmente aprenderam a lidar com os conteúdos escolares e tenham vontade de fazer isso. São dois riscos que corremos: esse e a intensificação da educação a distância.
É interessante essa menção que você faz às tensões do século 19, pois ela é muito parecida com o cenário destes últimos anos, com famílias querendo ditar o que os professores devem ensinar. Em relação às principais tensões, como hoje temos, por exemplo, as questões de gênero e da política, quais eram no século 19 os seus equivalentes?
A minha tese de doutorado é sobre a organização da escola primária portuguesa, não no Brasil. Lá, o que havia, nitidamente, eram pais que reivindicavam do poder público que ele oferecesse escolas, e depois se contrapunham a práticas dos professores. Havia pais sempre cobrando dos professores o que eles deixavam de fazer. Havia aqueles, por exemplo, que eram contra os castigos físicos na escola. Por outro lado, havia quem reclamasse de a escola não castigar fisicamente seus filhos, dizendo que eles vinham da escola mal-educados. Essa tensão entre uma escola que sempre pretendeu trabalhar a questão dos conteúdos e os pais que queriam repartir a tarefa civilizatória da educação, digamos assim, com a escola esteve sempre presente na história da educação portuguesa. Pelo que conheço da educação brasileira, pelas leituras e pesquisas que fiz, diria que aqui acontece a mesma coisa. A minha hipótese, diria até a minha tese, é que há um mito acerca dessa relação intrincada entre escola e família, que ela nunca existiu.
Essa predisposição das famílias ao homeschooling é um sinal de que as pessoas não querem que seus filhos sejam educados num meio comum, o que causa um problema político, pois me parece claramente prejudicial à democracia, ao convívio entre os futuros cidadãos.
Exatamente. Muito interessante isso, não havia pensado sob esse aspecto, mas é verdade. Eu fiz uma pesquisa sobre homeschooling, muito lateral, mas o que encontrei na realidade brasileira e até na literatura estrangeira é que muito do que se tem computado [em termos de satisfação com os resultados] parte da autodeclaração dos sujeitos, o que é um problema. Você perguntar para os sujeitos como foi o seu homeschooling… Se me perguntarem como foi a minha escolarização, vou dizer que foi ótima. A memória é muito seletiva. Essa ideia de você avaliar a partir dos próprios envolvidos é complicada. Há três aspectos discutíveis no homeschooling, a ser analisados: famílias que não querem que o darwinismo seja ensinado a seus filhos; famílias muito ricas que querem criar um gueto e não deixar que seus filhos convivam com o mundo comum que está ao lado, e uma terceira face, ainda mais perversa: famílias cujas práticas não podem se tornar públicas. Fico imaginando pais que violam suas filhas. É interessante para eles que essas filhas não estejam na escola e aprendam em casa, pois a escola pode reparar nos abusos que essa criança venha a sofrer. Ou filhos de pais separados vítimas de violência doméstica por parte de um deles, sem que o outro perceba, pois quem perceberia seria a escola. E isso não ocorre em pequena escala. Por isso, temo a aprovação desse tipo de política no Brasil.
As novas Diretrizes Curriculares da Formação Inicial e Continuada preconizam que os professores dominem as novas tecnologias e enfatizam a necessidade de práticas didático-pedagógicas no período de formação. Mas será que as diretrizes explicam direito em qual base teórica estariam assentadas essas práticas? A relação entre teoria e prática não ficou desequilibrada, só que agora com a balança pendendo para o lado da prática?
A meu ver, a teoria que embasa essas diretrizes é uma teoria extremamente frágil, do [sociólogo suíço] Philippe Perrenoud, que criou essa ideia de competências e habilidades. Então há muita preocupação com competências socioemocionais, competências de diferentes vertentes, sem explicar, por exemplo, o que seria essa resiliência emocional, essas competências e habilidades cuja matriz o próprio Perrenoud deixa ambígua, ele mesmo não define o que é. Do ponto de vista da construção dos argumentos, diria que é um discurso sedutor, mas que tem muito pouca profundidade analítica, inclusive em relação à teoria que está por trás desse texto. Quando chega à questão operacional, partindo daquela ideia de conhecimento profissional, prática profissional, engajamento profissional, tudo isso que pode parecer muito bonito, mas quando chega à divisão das horas, é assustador. São 800 horas, apenas, de base comum, sendo que essa base comum envolve o que eles chamam de conhecimento dos fundamentos políticos e metodologias educacionais, sistema de ensino e política educacional, ciências humanas – como um único item envolvendo a psicologia, a sociologia e a filosofia, sem que a história da educação sequer apareça -, o reconhecimento e a mediação de conflitos, o que não é suporte teórico para um currículo. Ou seja, além do fato de ser uma carga diminuta, é discutível o que é considerado como conhecimento teórico, esse grupo 1 da organização curricular.
As 1.600 horas que vão se voltar à aprendizagem dos conteúdos específicos das áreas e ao domínio dos conteúdos pedagógicos desse currículo são algo ainda mais assustador, pois há um pressuposto de que haverá um inventário para os estudantes dos cursos de pedagogia daquilo que eles terão como matérias a serem desenvolvidas com os alunos deles. Quer dizer, você vai ensinar para os alunos a matéria do 2º ano de um curso fundamental. Isso é uma bobagem. Não é isso que se ensina em um curso de pedagogia. Você ensina a problematização desses conteúdos, como esses conteúdos podem vir a ser trabalhados, e não como se faz uma divisão com dois algarismos. Uma carga horária absolutamente inchada. E mais 800 horas de prática pedagógica, que também acho excessivas – 400 horas em situação de ambiente real de ensino e aprendizagem, docência, estágio, residência pedagógica, sem definir qual a diferença entre uma coisa e outra. Há um excesso dessas horas práticas e uma pequena parcela da formação teórica que está ainda acoplada a outros saberes que não tem nada a ver com os fundamentos da educação ou as antigas ciências da educação – a psicologia da educação, a sociologia da educação, a filosofia da educação e a história da educação. Isso sim é o conhecimento teórico, não a mediação de conflitos, que não sei com que embasamento é considerada um suporte teórico. A subdivisão da carga horária demonstra uma versão excessivamente pragmática, como se o segredo de um ensino estivesse exclusivamente no método. Então você cria uma situação de aprendizado em que você, por suposto, ensina aos futuros professores o que eles deverão ensinar para as crianças, e como eles deverão trabalhar com as crianças esses mesmos conteúdos, como se isso resolvesse o problema da formação pedagógica. Mas a formação pedagógica vai muito além, tem a ver com a inserção do sujeito na sociedade, o papel que a educação ocupa no processo civilizatório. Isso envolve o conhecimento de conteúdos culturais que não estão postos nestas diretrizes.
O repertório cultural que poderia abastecer o professor para buscar novos ângulos, explicações, metáforas que proporcionassem uma comunicação ampliada com o universo do educando…
Exatamente, os bens culturais que foram legados pela humanidade. A impressão que dá é que há uma crítica a um modelo civilizador ocidental, então rompe-se com isso e passa-se a ensinar apenas o que é prático, o aqui e agora. Mas esses conteúdos vão fazer falta na formação desse sujeito, dessa profissionalidade docente – que é o termo que o [professor da Universidade de Lisboa] António Nóvoa costuma usar, para a organização de um ensino efetivamente bem construído.
A minha impressão é que falta uma discussão prévia sobre qual é a educação que nós queremos, para, a partir daí definir coisas mais práticas. Ou seja, faltam nortes. A ponto de trazermos as socioemocionais como grande novidade quando, se fizéssemos um processo de equivalências, veríamos que essas habilidades, ou ao menos parte delas, podem ser encontradas nas virtudes éticas tal como definidas por Aristóteles. Ou seja, a obsessão pela aprendizagem fez com que o sentido mais amplo do que significa educar fosse marginalizado e esquecido, para ser agora redescoberto como se fosse algo totalmente novo, descoberta essa que parece vir da constatação de desvios e infortúnios sociais.
Exatamente, é isso mesmo.
As Diretrizes contemplam a EAD na formação, mas são muito pouco específicas com relação a isso. Não dizem nem o quanto nem o quê poderá ser feito via EAD. Não é uma temeridade numa atividade que requer interlocução próxima entre formador e estudante?
Essa é uma questão do mercado. Essa diretriz foi construída a partir de uma dinâmica cuja hegemonia está na mão de mantenedoras privadas que já têm transformado a formação de professores em cursos a distância. Ou seja, essa tendência já está colocada, então as diretrizes repetem isso. E repetem com a ambiguidade que é conveniente. O fato de não especificar como é que isso será feito é bastante oportuno para que seja feito de qualquer maneira, sem que haja qualquer fiscalização dos órgãos estatais sobre o assunto.
De um ponto de vista histórico, muitas das críticas recorrentes à formação e à educação praticada hoje, em função do papel ainda preponderante do professor, têm ao menos 500 anos, pois já estavam presentes nos Ensaios de Michel de Montaigne e pautaram muito da visão do iluminismo português contra a pedagogia jesuíta, sobre o qual você discorre em seu livro Instrução pública e projeto civilizador (Editora da Unesp, 2017). Em essência, a crítica ainda é a mesma, ou tem aspectos particulares não comparáveis?
Acho que há um aspecto particular específico, que parte de uma premissa equivocada. Olha-se o currículo de pedagogia da USP, por exemplo, e se entende que esse currículo é excessivamente teórico. Aí constata-se que os resultados escolares aferidos pela prova do Pisa não são bons, e que, se não são bons, é porque o professor é malformado. Aí analisa-se o currículo da USP e chega-se à conclusão de que os professores são malformados porque o currículo é excessivamente teórico. Mas a USP não está formando um contingente suficiente para toda a rede pública, o que quer dizer que esses professores que estão na base do ensino podem ter dificuldades efetivamente de formação, exatamente por terem vindo de faculdades com ensino a distância, com ênfase em questões pragmáticas e pouco sólidas do ponto de vista teórico. Então, o raciocínio oposto ao que se imagina pode ser uma realidade. Quem é que disse que é porque os professores têm poucas matérias da prática e que eles são malformados? E quem é que disse que eles são malformados e que esse é o problema do ensino? Do meu ponto de vista, essa é uma questão que está na lógica de um pressuposto que nunca é conferido, que não é objeto de análises acadêmicas sólidas, que parte quase que de um “achismo”.
Mas quanto você crê que há de responsabilidade das universidades públicas nessa análise da qualidade da formação? Isso tanto no âmbito das práticas escolares, sobre as quais se fazem muitas pesquisas qualitativas e talvez faltem levantamentos de mais fôlego, como também na sugestão que está em aberto nas diretrizes que é a formação de comunidades educativas que estão acontecendo em outros países, mecanismos que pressupõem maior aproximação entre universidade e escola. Nesse aspecto, há uma reclamação grande por parte de pessoas ligadas às secretarias de Educação e de professores de que há muito distanciamento das universidades em relação a eles. Até que ponto as universidades são responsáveis por isso e o que poderia ser feito de diferente?
Sobre as comunidades educativas é algo que não tenho conhecimento suficiente para falar. Agora, penso que não se pode cobrar da universidade que ela seja uma secretaria de Educação. E muitas vezes essa crítica espera que a universidade venha a resolver os problemas das redes públicas de ensino, o que é impossível. A Faculdade de Educação da USP tem parcerias com inúmeras escolas, que são as escolas-campo, como chamamos, que organizam a maior parte dos estágios dos nossos alunos. E há inúmeras pesquisas voltadas à análise dessas escolas-campo, onde a maioria dos alunos faz os seus estágios.
A verdade é que o lugar que a universidade ocupa na sociedade brasileira acaba sendo ofuscado. A universidade tem dificuldade de transformar o conhecimento acadêmico em um conhecimento de divulgação. Isso é um fato. Temos essa dificuldade. Não adianta distribuir as teses sobre a relação universidade-escola tal como elas foram feitas, é preciso que essas teses se transformem em textos que deem acesso a um público mais amplo. O que não quer dizer que as universidades não produzam pesquisas sobre as relações universidade-sociedade. Por exemplo: O Plano Nacional de Alfabetização, feito e apresentado pelo governo federal no ano passado sem que houvesse qualquer interlocução com os estudos sobre alfabetização, que são inúmeros na universidade brasileira. Desde a questão da história da alfabetização até as políticas de alfabetização, incluindo aí os métodos utilizados, nada disso foi levado em conta. E aí qual é o discurso do governo? De que “nós levamos em conta as pesquisas das ciências cognitivas e das neurociências”. Como se as ciências se resumissem às neurociências. Então, essa crítica contra o conhecimento acadêmico das universidades, no tocante a essa interação com a sociedade, é injusta. O que falta é o conhecimento de divulgação, campo que deveria ser mais bem cuidado pelas universidades. Mas isso também está relacionado a questões internas das universidades, que é o fato de os professores universitários hoje só pontuarem em sua produção quando publicam em revistas especializadas. Escrever um artigo para um jornal não conta nada para a carreira do professor. Tem a ver com essa questão profissional.
O jornalismo poderia cumprir um papel importante nesse aspecto?
Sem dúvida. Já foi um elemento auxiliar muito mais forte. Nos anos 80, a Folha de S.Paulo tinha um caderno só de educação. Hoje, não tem mais isso. Por quê? Porque não tem quem escreva. Naquela época, a universidade escrevia no jornal. Hoje, os docentes universitários dialogam pouco com os jornalistas.
Você vê outras formas de fazer essa divulgação?
Revistas especializadas, cursos de extensão, de aperfeiçoamento, cursos que possam criar oportunidades para que a rede pública se aproxime mais da universidade, atendendo a essa expectativa. O que notamos é que grande parte do público que presta os exames de mestrado e doutorado não é um público que quer aprofundar sua formação acadêmica, é um público que quer aperfeiçoar a sua prática. E, para isso, precisaríamos ter outro tipo de formação, como os antigos cursos de aperfeiçoamento, ou o que hoje chamamos de mestrados profissionais. Deveríamos investir mais nessa ideia de mestrado profissional.