Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Texto publicado em 20/05/2020
O anúncio de mudanças no Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), com a introdução de provas anuais em todas as etapas dos ensinos fundamental e médio, com exceção do ano de ingresso dos alunos no fundamental, faz do exame um forte candidato a transformar-se numa espécie de cloroquina do campo educacional. Ou seja, um instrumento defendido pelo governo, renegado pela maior parte da sociedade e sem sustentação teórica a justificar sua implantação nos moldes definidos pela portaria 458 do Ministério da Educação, publicada em 5 de maio no Diário Oficial.
O primeiro ponto a causar grande estranheza em todos os educadores que estudam avaliação no âmbito da educação foi a ausência de qualquer nota técnica que pormenorizasse e justificasse as decisões tomadas por meio da portaria.
Não se pode dizer que a portaria seja autoexplicativa, apesar de trazer algumas pistas sobre as intenções do MEC/Inep. Em seu artigo 6º, em que discrimina seus objetivos, ela diz em seu 1º parágrafo que visa, entre outras coisas, a:
“Construir uma cultura avaliativa, ao oferecer à sociedade, de forma transparente, informações sobre o processo de ensino-aprendizagem em cada escola, comparáveis em nível nacional, anualmente e com resultados em tempo hábil, para permitir intervenções pedagógicas de professores e demais integrantes da comunidade escolar”.
Em entrevista ao jornalista Paulo Saldaña, da Folha de S.Paulo de 6 de maio, o presidente do Inep, Alexandre Lopes, diz que essa cultura avaliativa incluiria o acompanhamento permanente das famílias e a possibilidade de os professores conhecerem o histórico dos alunos que receberiam a cada início de ano.
As primeiras questões surgem aí. Até agora, faziam o Saeb os alunos dos 5ºs e 9ºs anos do fundamental e do 3º ano do ensino médio. O uso pedagógico dos resultados, em função do tempo que as informações levam para chegar às escolas, sempre foi um calcanhar de aquiles do sistema. A demora muitas vezes encontrava novas realidades no plano escolar. Acreditar que a entrega desses resultados será feita de forma “tempestiva”, como disse Lopes à Folha, talvez seja como acreditar na eficácia da cloroquina nos dias iniciais da Covid-19, mas só conseguir aplicá-la quando o paciente já está em estado terminal, ao qual ela pode dar rumos definitivos. Ou seja, a possibilidade de descompasso temporal é grande. A aposta do governo é na entrada da tecnologia em cena, com os alunos fazendo prova digital a partir do 5º ano.
A que servem as provas de larga escala?
Outra questão, menos consensual mesmo entre os que não viram sustentação teórica no novo Saeb, é o tipo de cultura educacional embutido na aposta de testes de larga escala em série.
Luiz Carlos de Freitas, professor aposentado da Unicamp e ácido crítico de políticas que retirem as avaliações da escola e do professor que convive cotidianamente com os alunos, comentou a novidade em seu blog logo após a medida ter se tornado pública, no dia 6 de maio.
Para ele, ela faz parte de uma “insanidade meritocrática”, que apenas estimula o espírito competitivo entre alunos que deveriam aprender o exercício da cooperação e da solidariedade. A convocação das famílias, em sua opinião, tende a fazer com que elas meçam a escola por essa régua e passem a pensar a partir de uma lógica implantada em países como a Austrália, em que a escolha da escola pode ser feita a partir de seu desempenho nas avaliações. O que, num processo mais longo, levaria à privatização do ensino.
Não querendo ir tão longe nas suposições, o que parece claro é o condicionamento do processo educacional ao desempenho nas avaliações externas. Nesse ponto, a portaria faz vagas promessas de avaliações de outros quesitos que não os tradicionais leitura e matemática. Em 2019, houve avaliações amostrais de ciências e alfabetização. Tudo isso parece muito pouco para um processo que deveria ter como meta formar sujeitos para o convívio social, e não apenas jovens proficientes em provas de larga escala.
Outros educadores que também se mostraram críticos com a portaria chegam até a fazer ressalvas positivas, como o fato de o novo Saeb passar a ser mais uma possibilidade de ingresso nas universidades, algo que também precisa ser mais bem detalhado.
Sem eliminar o Enem, o Saeb passará, já em 2021, a ser aplicado também no 1º ano do médio. Em 2022, no 2º ano. Assim, o desempenho dos alunos, medido ao longo dos três anos, poderá levá-los à universidade. Modelos similares já são aplicados na UnB (Universidade de Brasília) e na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas/SP). Na UnB, o PAS (Programa de Avaliação Seriada) traz avaliações realizadas a partir de uma matriz própria, com 5 competências e 12 habilidades presentes nas 3 etapas (anos do médio). Segundo a universidade, “há um conjunto de objetos de conhecimento pensados de forma interdisciplinar, nos quais são sugeridas obras em diversas modalidades: textos, músicas, filmes, pinturas, entre outras”.
Na Unicamp, desde 2011 os melhores alunos das escolas públicas locais ingressam direto na universidade por meio do ProFis (Programa de Formação Interdisciplinar Superior). Desde o ano passado, abriram-se também novas formas de ingresso, com vestibular específico para indígenas, um sistema especial para o Enem (desvinculado do Sisu), além de um edital para vagas olímpicas e do vestibular tradicional.
Romualdo Portela, responsável pela área de avaliação e pesquisa do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e presidente da Anpae (Associação Nacional de Política e Administração da Educação), vê, em princípio, com bons olhos essa ampliação do acesso. “A ideia de que você avalie o aluno durante o ensino médio não é ruim. É preciso diversificar as formas de ingresso. A experiência da Unicamp é positiva.”
Muito custo, pouca informação nova
Já no que diz respeito às provas anuais para o ensino fundamental, sua avaliação é de que elas irão representar um aumento significativo em termos de despesas, como também não trarão grandes novidades em relação ao diagnóstico. Em termos de informações para gestão do sistema, diz ele, bastaria fazer uma prova amostral, não seria necessário fazer a prova censitária. E muito menos anual. Portela, que não considera as provas como fatores motivadores de alunos e famílias para maior empenho educacional, acredita que o diagnóstico não sofra mudanças muito sensíveis. “Os resultados hoje são meio reiterativos. Avaliar a toda hora é distribuir termômetro para combater a febre”, pontua.
Ex-presidente do Inep e responsável pela transformação do Enem em ferramenta seletiva para as universidades em 2009, Reynaldo Fernandes também põe em questão a nova periodicidade como ferramenta para estimular a melhora do ambiente pedagógico para os estudantes. “Avaliação de larga escala não é avaliação formativa, não tem caráter pedagógico. Mas parece que tem gente querendo transformar a larga escala em avaliação do professor”, diz, em tom de reprovação.
Fernandes lembra que quando foi introduzida a Prova Brasil, em 2005, a ideia era estimular a accountability, a responsabilização da gestão pelos resultados por meio de avaliações periódicas, comparáveis no tempo. Ele próprio admite, no entanto, que a Prova Brasil não precisaria ter sido censitária, mas que na época o governo avaliou que não valia a pena restringi-la e alijar algumas escolas do processo.
Agora, no entanto, a extensão para todos os anos e o fato de tornar-se anual não fazem sentido do ponto de vista da gestão. “Tudo isso para mandar boletins para os pais? A única coisa que talvez possa ser feita é usar para medir o valor adicionado do professor”, diz Fernandes. O valor adicionado do professor é o quanto o docente de melhor desempenho acrescenta ao aprendizado de seus alunos, um cálculo não muito fácil de ser feito. “Tem de avaliar o custo-benefício disso, para quê você vai usar. Ainda não fazemos nem modelo de valor adicionado de escola. E teríamos poucas disciplinas para medir isso aqui”, acrescenta.
Romualdo Portela lembra do que fala o estudioso americano Martin Carnoy sobre o tema. “Ele tem uma argumentação interessante sobre o valor agregado. Do ponto de vista matemático, as aleatoriedades são muito grandes. Principalmente porque cada classe é uma classe, com estudantes de diferentes origens, famílias etc.”. E conclui que avaliar professor seria novamente atirar no alvo errado.
Fugindo da equidade
Outro ex-presidente do Inep, Francisco Soares, professor emérito da UFMG e membro do Conselho Nacional de Educação, foi autor, até onde sabemos, da análise mais direta da portaria governamental, tendo publicado no LinkedIn em 11 de maio o artigo “Mudanças no Saeb”.
Como tem sido frequente em suas publicações, Soares dá atenção à questão da equidade de oportunidades e o quanto o que está enunciado na portaria permite observar em termos de preocupações relativas a esse ponto. Começa realçando trecho da portaria que expõe a intenção de levar em conta algumas dimensões importantes para a análise da qualidade no ambiente escolar, tais como: atendimento escolar; ensino e aprendizagem; investimento; profissionais da educação; gestão; equidade; cidadania, direitos humanos e valores. Esses aspectos se somariam aos resultados de provas de larga escala para análise da educação ofertada pelas escolas.
Os senões começam aí, pois a constatação de que não há menção à obrigatoriedade de que pelo menos 80% dos alunos de cada escola participem da prova dá margem à seletividade dos participantes, o que permite que as escolas “escondam” aqueles estudantes que não lhes convêm. O fator, por óbvio, desequilibra a análise por permitir comparações injustas.
“Além disso”, escreve Soares, “a portaria não inclui entre as dimensões de qualidade da educação a infraestrutura das escolas, a existência de recursos pedagógicos e o dimensionamento do corpo docente, também previstos na lei do PNE.” Isso equivaleria a dizer que condições materiais e humanas desiguais não são relevantes para os resultados educacionais.
Outro ponto destacado é que o novo exame não realiza nenhuma mudança nas bases pedagógicas de sua formulação, desconsiderando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), cuja formulação visava justamente criar novos parâmetros a incidirem sobre currículos e avaliações. Aumenta-se o número de alunos a fazer as provas, a sua periodicidade, as disciplinas (o que é apontado apenas genericamente na portaria), mas se mantém a forma de avaliar. Se a BNCC é boa ou não, são outros 500. Mas mobilizar educadores Brasil afora, discuti-la, construí-la, escrevê-la, implementá-la e nem sequer mencioná-la na formulação das avaliações é, no mínimo, algo como entrar na UTI sem máscara e sem desinfetar as mãos. Para testar uma nova terapia discutida por tantos durante tanto tempo, é preciso seguir um protocolo que nos leve a análises consequentes para sua validação.
O artigo ainda faz outras considerações sobre o modelo das questões e o tipo de raciocínio que fomenta, o quanto o modo de avaliar – e, consequentemente, levar os alunos a se prepararem para isso – tem feito nossa educação se distanciar dos elementos que levam a pensamentos mais complexos. A mesma complexidade com que temos de lidar ao tratar de uma pandemia que exige que olhemos para diversas variáveis, mutáveis dia a dia, minuto a minuto, para que possamos ir ajustando as medidas a serem tomadas. Medidas que exigem a constante reavaliação para correção ou afirmação de rumos, em ações incessantes. E aí, quando estamos com um quadro variado à frente, vendo essas variáveis influenciarem umas às outras, aparece um gaiato no centro máximo de controle e manda parar tudo. “Bota cloroquina aí!”. O exame desenfreado, feito sem o correspondente protocolo (a nota técnica que o justifique) é mais ou menos isso, a chave mágica da cloroquina.
Nota da redação: Entramos em contato, via e-mail, com a Assessoria de Imprensa do Inep nos dias 6 e 13 de maio, com questões referentes à portaria 458. Até a publicação deste texto, não houve resposta do órgão. Ao que parece, ouviu-se por lá a ordem para os jornalistas se calarem.