O temor de um retorno precipitado

Grupo de profissionais e pesquisadores ligados à educação infantil lista preocupações e cuidados indispensáveis para que crianças possam voltar à escola

Foto: Arquivo/Emei Dona Leopoldina

Texto publicado em 03/06/2020

Com a crescente pressão a que os governos têm sido submetidos pelos setores produtivos para a retomada de suas atividades, vários governadores e prefeitos têm acenado com a possibilidade imediata de relaxamento das medidas de distanciamento social. De fato, a cidade do Rio de Janeiro começou este processo em 3 de junho; em São Paulo, o governador João Dória oscila entre a adoção do lockdown e a flexibilização do distanciamento, sempre recorrendo ao argumento de que está “ouvindo a ciência”, como se esta, principalmente no enfrentamento de um fenômeno ainda desconhecido, lhe segredasse um único e inquestionável caminho. Em ambos os casos, o número efetivo de reprodução do vírus, o R, principal variável para avaliar o processo de expansão do vírus, ainda é maior do que 1, quando o ideal é que fique abaixo disso.

Com a possibilidade iminente de retomada, uma luz se acendeu entre os profissionais ligados à educação infantil, sejam professores, gestores ou pesquisadores. Em decorrência dessa luz de alerta, circula desde o dia 1º de junho o documento “Para um retorno à escola e à creche que respeite os direitos fundamentais de crianças, famílias e educadores”.  Neste primeiro momento, é assinado por 10 educadores de várias instituições, como Maria Malta Campos, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e professora aposentada da PUC-SP, e Rita Coelho, ex-coordenadora de Educação Infantil do Ministério da Educação e pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora, além de representantes do Movimento Interfóruns de Educação Infantil (Mieibi).

O documento pretende ser um instrumento de reflexão a ser levado em consideração pelas autoridades das áreas da saúde, educação e de coordenação das medidas contra a pandemia em estados e municípios. O princípio direcionador é que protocolos gerais sejam adaptados com olhos para as especificidades da educação infantil, diferentes inclusive dos outros ciclos educacionais.

Ao contrário do que se pensava no início da pandemia, o vírus também mata crianças, ainda que os índices de contaminação sejam relativamente baixos. Porém, o desenrolar do combate à Covid-19 tem mostrado que quanto piores sejam as condições prévias da população, mais letal pode ser o vírus. Assim, más condições de moradia e sanitárias, com saúde precária e alimentação piorada com a ausência de merenda escolar, entre outros fatores, tornam essa população mais vulnerável, acentuando a exigência de protocolo específico para a retomada das atividades.

Foi pensando numa série dessas questões que o professor e pesquisador Paulo Sérgio Fochi, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, também coordenador do Observatório da Cultura Infantil (Obeci), começou a promover, na segunda quinzena de maio, uma série de lives para discutir sobre quais pontos seria necessário refletir para que o retorno das crianças atendesse aos direitos fundamentais de todos os envolvidos na operação.

Fochi havia ficado alarmado com a possibilidade de retomada das aulas no Rio Grande do Sul, aventada pelo governador Eduardo Leite (PSDB). “Há muitos casos de crianças que chegam ao hospital com um quadro clínico que não é de síndrome respiratória, como a maioria dos adultos, mas sim inflamatória”, diz o pesquisador, sugerindo que essa variação e a dificuldade de identificar a doença requer uma preparação dos professores. Mas essa preparação não se restringe a esse aspecto.  

Como há muitos pontos específicos na educação infantil – como o fato de, em geral, as crianças não ficarem sentadas no mesmo lugar na maior parte do tempo, necessitarem de cuidados e auxílio para troca de fraldas, alimentação, ida ao banheiro, por exemplo -, é necessário que a retomada se dê em dois tempos. Primeiro, voltariam os professores e seria feita uma formação com eles, a partir de um protocolo que os preparasse para as várias questões com as quais vão se defrontar.

No caso das creches, o uso de máscaras não é indicado para crianças até dois anos; entre os dois e os cinco, é preciso uma avaliação caso a caso, pois se a criança levar a mão muitas vezes ao rosto sem higienização adequada, a máscara pode virar um grande receptáculo de vírus. Além desses pontos, o documento também alerta para o fato de que, após 70 dias ou mais de distanciamento social, período em que as crianças podem ter passado por várias experiências traumáticas, será crucial o acolhimento dado a elas no retorno. É necessário ouvi-las, tentar entender as suas angústias e eventuais manifestações agressivas ou de tristeza.

Érica Dumont, outra signatária do documento, professora do departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, traz outra questão: como se dará o uso dos equipamentos de proteção individual nesse contexto? Ela avalia que a tendência é de um retorno a uma perspectiva de assepsia que caracterizava os tempos mais antigos das creches, quando eram ligadas à assistência social. Isto é, se houver disponibilidade de recursos para o uso de luvas e máscaras sendo trocadas constantemente. Fochi faz outra ressalva: pode ser preocupante que educadoras se vistam “como fantasmas”, com luva, toca, avental e máscara branca, o que pode assustar os bebês.

Mas Érica lembra que uma medida exigida nos protocolos já em voga nos países europeus pode ser benéfica para a educação infantil: a ênfase na realização de atividades em espaços abertos, mais amplos e arejados. É uma recomendação anterior à pandemia, que favorece o desenvolvimento motor das crianças e seu contato com a natureza.

Fochi aponta também para a conveniência de olharmos para as experiências dos países europeus. A França, por exemplo, teve de voltar atrás depois de retomar as aulas de todos os ciclos ao mesmo tempo. Houve aumento no registro de casos também entre os menores.

A Itália, assim como a Alemanha, retomou primeiro as aulas dos alunos mais velhos, em especial aqueles que estão em séries que antecedem exames de passagem a outro ciclo. No caso italiano, as crianças menores devem ter um retorno parcial e experimental com a escola de verão, uma espécie de ensaio/teste para o retorno entre o final de agosto e o início de setembro.

O documento brasileiro lista algumas das medidas adotadas em países europeus, não só para a educação infantil, mas também para o ensino fundamental:

– Organização de agrupamentos menores, com parte das turmas atendidas em jornadas reduzidas;

– Prioridade para o atendimento das crianças que precisam frequentar as instituições educativas e que não podem permanecer em casa com seus pais ou outros responsáveis; – Marcações no chão de corredores e espaços comuns (área limpa e área suja) para orientar as pessoas e evitar aglomerações de crianças e adultos;

– limpeza de superfícies duas ou três vezes por dia;

– Refeições mais simples servidas nas turmas e não em refeitórios coletivos;

– Utilização de espaços externos que favoreçam o espaçamento das crianças entre si e evitem o uso contínuo de espaços fechados;

– Portas e janelas permanentemente abertas para facilitar a ventilação de salas e corredores.

Cadastre-se para receber novidades por e-mail

Mantemos os seus dados privados e os compartilhamos apenas com terceiros que tornam este serviço possível.

Curtas

  •   Teve início em 29/06  a websérie “Caminhos do Devir – Volta às aulas pós-Covid-19”, com o debate sobre “Como aplicar a gestão de crises para planejar a volta às aulas de forma segura”. Os educadores e sócio-fundadores da Devir Projetos Educacionais, Luis Laurelli e Eloisa Ponzio, além do consultor Flávio Schmidt, consultor em gestão de crises do Grupo Trama Comunicação, analisaram as estratégias, cuidados e precauções para garantir uma volta às aulas que possa assegurar a saúde de professores e crianças e a tranquilidade das famílias. A conversa teve a mediação do editor do Trem das Letras, Rubem Barros. O encontro marcou também o lançamento do e-book “A Covid-19 nas escolas e o caminho para a retomada do presencial”, disponível para download, que pontua sobre os passos da retomada.  Texto publicado em 25/06/2020

  • O ano de 2020 marca o final do mandato de 12 dos 24 conselheiros do CNE, o Conselho Nacional de Educação. A primeira lista com sugestões de substitutos, deixada pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, provavelmente na correria a caminho do aeroporto, era composta principalmente por olavistas. Gerou resistência até dentro do próprio governo Bolsonaro. Diante do freio, puxado pelos militares, o ministro interino, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, está fazendo uma nova rodada de discussão para a escolha de outros nomes.  A Casa Civil será um dos principais interlocutores para definir a lista final. Se o padrão das escolhas continuar o mesmo de outras áreas, é provável que as escolas cívico-militares ganhem fôlego inaudito. Texto publicado em 25/06/2020

  • Além do Fundeb, é preciso ficar de olho na possível votação da Medida Provisória 934, que estabelece normas de excepcionalidade para a educação básica e superior em 2020. O relatório da deputada Luísa Canziani (PTB/PR) manteve entre as emendas que devem ir a plenário a liberação da obrigatoriedade do cumprimento das 800 horas para a educação infantil e de oferta da educação a distância na mesma etapa. A relatora deixa a decisão nas mãos dos gestores municipais. Além de contrariar todas as evidências científicas e pedagógicas que enfatizam os prejuízos da educação a distância para as crianças de até 5 anos, a medida pode significar a abertura da porteira para os grupos privados que atuam no negócio da educação a distância. Com as redes de ensino sufocadas pela falta de dinheiro, com aumento das despesas por causa da pandemia e queda na arrecadação de impostos de até 24%, impactando diretamente no Fundeb, principal fonte de recursos para a educação básica pública, a EAD pode ser vista por muitos como solução milagrosa. Mas será apenas um instrumento para cumprir a obrigação legal de oferta de ensino. E inadequado, no caso da educação infantil. É preciso ver o que falará mais alto, se o rigor burocrático ou o bom senso. Texto publicado em 25/06/2020

Redes Socias