Os 60 anos de Accattone

Primeiro filme de Pasolini, lançado em 1961, foi rodado com atores não profissionais, como Franco Citti, que fez o personagem principal. Algumas décadas depois, ele continuava sendo procurado para falar do escritor e diretor assassinado em 1975

Texto publicado em 22/12/2021
Foto de divulgação do filme

De Roma, especial para Trem das Letras

Encontrei-me com Franco Citi alguns anos atrás, ao final da gravação do Maurizio Costanzo Show, o talk show mais longevo da TV italiana. Fui para lá levado pelo desejo de encontrar uma das figuras que encarnava o cinema de Pier Paolo Pasolini e o vulto de Accattone (1961), um filme que permanece ainda hoje, quase 60 anos depois de seu lançamento, como uma das obras mais belas e poéticas sobre a realidade das periferias metropolitanas.

Nascido na “borgata” romana de Marranela, trabalhador braçal, Franco Citti foi descoberto por Pasolini, que, por sua maneira de ser e falar tipicamente romanas, o escolheu para Accattone, seu filme de estreia. O fato de ter participado de tantos filmes, feito tantos papeis e ter trabalhado com cineastas do primeiro time em sua carreira (além de Pasolini, Marcel Carné, Valerio Zurlini, Carlo Lizzani, Francis Ford Coppola) não apagou minimamente a sua desilusão e seu desencanto em relação à vida. Conversamos um pouco e trocamos nossos números de telefone.

Eu, quando lhe dei o meu, disse: “Se quiser falar comigo, me ligue nesse número na hora do almoço ou do jantar”, e ele, como se fizesse a pergunta mais normal do mundo: “ma perchè, magni pure? [mas por quê, você também come?], a resposta mais romana que eu poderia ouvir.

Uns dias depois, telefonei para a casa dele. Seu irmão Sergio atendeu. Pensou que eu fosse um técnico de geladeiras, porque, passando-lhe o telefone, disse que eu era da Frigidaire*, na verdade o nome da revista, muito conhecida naquela época, para a qual eu fiz a entrevista. Marcamos então o local de encontro, um bar anônimo vizinho ao mar, em Fiumicino.

Franco me viu de longe, me fez um aceno e se aproximou. Eu tinha levado de presente para ele a versão italiana de Storie di ordinária follia [Crônica de um amor louco, L&PM], de Charles Bukowski. E ele se revelou um esplêndido personagem bukowskiano. Tinha nas mãos o bilhete da Loteria Esportiva que tinha acabado de fazer e as roupas manchadas de tinta branca. “Estou pintando uma casa”, me disse.

A entrevista de Stefano Milioni com Franco Citti para a Frigidaire
(data desconhecida, entre os anos 80 e 90 do século passado)

Do outro lado, Fiumicino é fria e cinzenta ao amanhecer. Franco Citti caminha à beira-mar misturando melancolia e gratidão. Vinte anos de entrevistas sobre o autor de Accatone (1961) parecem não ter exaurido suas lembranças. Enquanto o ator romano faz sua narrativa, vai se compondo um retrato de um Pasolini inabitual: não o intelectual, mas o amigo. O intérprete solitário e sob medida das periferias da capital italiana.

“Eu e meu irmão já dissemos um milhão de vezes. É totalmente fora de cogitação que tenha sido o Pelosi. Aquilo ali foi um estrago e tanto. Foi um verdadeiro massacre, uma pessoa só não conseguiria fazer aquilo tudo. Tem muitas coisas mal explicadas, obscuras. Coisas políticas também, naturalmente”.

A voz de Franco Citti, uma face inesquecível do cinema de Pier Paolo Pasolini, é áspera, cortante. Assim como suas ideias, de resto.

“Fui embora de Roma antes de tudo porque “le borgate” estavam começando a desaparecer e com elas os meus amigos. E quando você não tem mais as “borgate”, se refugia no mar. É por isso que vim viver em Fiumicino. Tem uma atmosfera de morte no entorno daqui que me agrada. Quem sabe eu já não estou morto, aqui, nessa solidão que eu amo e que me dá alegria. Mais do que isso: eu estou vivo porque estou em Fiumicino. Em Roma, talvez já estivesse morto”.

Como você conheceu Pasolini?

Por meio do meu irmão Sergio, em uma pizzaria de Torpignattara**. Meu irmão me disse: “Fra, te apresento um escritor, um amigo meu”.

Ele já era conhecido naquela época?

Não. Naquele tempo ele escrevia poesias em friulano***, aquelas coisas dos primeiros tempos.

Então você não sabia mesmo quem era?

Não. De início cheguei a pensar mesmo que fosse analfabeto. Era professor primário em Ponte Mammolo. Meu irmão me disse: “É um escritor. Vamos comer uma pizza juntos”. Eu estava todo sujo de cal porque trabalhava como pedreiro com meu pai. A gente se conheceu ali e começamos a nos frequentar.

E qual foi a tua primeira impressão de Pasolini?

A de uma pessoa normal. Não pensava muito no fato de ele escrever. Se escrevia, o que isso me importava? Às vezes acontecia de eu falar alguma coisa em dialeto romano pra ele, e ele anotava.

Ele punha nos livros dele as histórias que você e teu irmão Sergio contavam pra ele?

Paolo gostava sobretudo do espírito, da atmosfera das “borgate” romanas, essa gente alegre. Tanto é verdade que ele passava quase todo o tempo da vida dele com a gente, nas “borgate”. E, desse jeito, sendo um escritor, ele observava tudo o que acontecia a seu redor e, de quando em quando, lançava esses livros. Mas o que mais me interessou foi quando me disse que me daria um papel no filme dele.

E como é que você reagiu?

Sabe, eu sou um pessimista nato, não é que acredite muito nas coisas que me oferecem. Então eu lhe disse: “Está bem, Paolo, quando for pra fazer, a gente faz”. Ele repetia pra mim: “tem um belo papel pra você. Vai ver que vamos fazer”. E desse jeito um dia nasceu este cazzo de Accatone.

Enquanto vocês estavam filmando você se sentia no papel, ou era alguma coisa que não tinha a ver com você?

Eu me sentia “em casa” porque estava filmando com todos os meus amigos da borgata. Ficávamos nos divertindo um pouco em casa, e depois aquelas aventuras, aquelas histórias, eu adorava fazer. Para fazer o filme, eu tive de ler Meninos da vida. Mas depois disso, nunca compreendi o que quer dizer “menino da vida”.

Vocês passeavam em Torpignattara?

Torpignattara, o Pigneto, Testaccio, Pietralata. Andávamos por toda a periferia de Roma. O filme foi em frente um pouco desse jeito. Ele dirigiu a gente, mas éramos livres para fazer aquilo que nós éramos.

Então vocês tinham a possibilidade de colocar coisas de vocês no filme, pessoais…

Sabe, os diálogos já vinham meio escritos. Pier Paolo os escrevia com meu irmão Sergio, mas qualquer tirada que na dublagem parecesse melhor, nós inseríamos. No entanto, Accattone permaneceu como nós filmamos. E, de fato, é um belo filme porque é espontâneo, não tinha nenhum ator profissional e rodamos meio na correria. Com algumas confusões no meio. Os caras que representavam os papeis comigo, eu incluído, algumas manhãs não apareciam, às vezes iam fazer uns rolos próprios, às vezes iam fazer outras coisas, então era um pouco complicado.

Eram questões práticas, não de dinheiro.

Financeiramente não tinha problema. Acho que o filme custou bem pouco. Eu, por exemplo, ganhava sempre 8 mil liras por dia. Trabalhei oito semanas, mais a dublagem, digamos que trabalhei em torno de um ano e ganhei algo em torno de 1 milhão e 300 mil liras em dinheiro de hoje.

Quando você revê o filme, o que você acha?

Eu procuro não ver de novo.

Por quê?

Porque a essa altura eu já tenho o filme todo na memória, como de resto os outros. Às vezes passam Accattone na TV, eu também tenho em videocassete, mas evito ver de novo. Não porque tenha envelhecido, mas porque eu gostaria de ver com determinadas pessoas. Com aqueles que na época criticaram o filme, por exemplo.

Como a tua vida mudou depois de Accattone?

Pra pior. Veja, a relação com Pasolini foi para mim, num certo sentido, destrutiva, porque não é que eu amasse fazer cinema, mas ao mesmo tempo eu sabia que deveria fazer, talvez só por amizade mesmo. E, como eu já te disse, por algumas coisas, como o fato de eu trabalhar com meus amigos, eu ficava fascinado. Mas depois fui constrangido a trabalhar com outras pessoas que eu não conhecia e ficava de saco cheio, porque não eram leais comigo. Era gente atrás de sucesso, entende? Então alguns talvez se sentissem no direito de dizer: “ah, mas aquele é um borgataro”.

Que tipo de relação você tinha com Pasolini?

Ele era um pouco como um pai. Tinha um grande medo de que eu sumisse de um dia para o outro, sem terminar o filme. Aconteceu quando rodávamos Mamma Roma (1962) com Anna Magnani. Tive um episódio com a polícia. Briguei com um guarda e ele me prendeu por desacato. Fiquei preso por uns 20 dias e depois fui liberado.
O filme foi interrompido por esse motivo?

Não. Colocaram o meu irmão como se fosse meu dublê. E depois daquele episódio, quando fizemos Édipo Rei, Pier Paolo se sentiu obrigado a colocar duas pessoas para me vigiar, para que eu não saísse. Mas sabe, o cinema, para mim, era algo que eu fazia como divertimento. Profissionalmente, não me interessava muito.

Se eu não estou enganado o próprio Pasolini te disse que você devia simplesmente ser você mesmo, não representar.

Sim, tanto é verdade que ele procurou não deixar que eu me transformasse em francês, inglês ou americano. Eu era muito requisitado, naqueles tempos. O meu terceiro filme eu fiz com Marcel Carné. Depois trabalhei nos Estados Unidos. Fiz dois dos filmes da saga O poderoso chefão com Coppola, o primeiro e o terceiro.

A figura de Pasolini nunca foi pesada para você?

Em certo sentido, sim. Eu era a imagem do cinema dele, e não havia necessidade de ser alguém único. Ele poderia encontrar alguma outra pessoa, e talvez tivesse sido melhor para mim, eu teria continuado a ser pedreiro, pintor. Tudo bem, fico feliz de ter feito cinema com ele, isso me deu a possibilidade de ficar melhor economicamente, mas, se voltasse atrás não sei se faria cinema de novo. Porque são 35 anos de perguntas e, no fundo, o contato com uma pessoa é aquele, nada mais, nada menos. De vez em quando você pode lembrar uma coisa a mais, porém, Pasolini fala por meio das suas imagens, da sua escrita. E quem sabe quantas vezes não me disse certas coisas.

Que importância Pasolini teria na sociedade de hoje?

Pense em quantas coisas ele nos teria contado com sua escrita ou com suas imagens.

Se você pensar, são muitas realidades e tensões para se contar aqui na Itália…

Sim, claro. Acho que, se Pasolini estivesse vivo, os jovens de hoje não seriam assim. Eles o teriam amado e ele teria amado a juventude de hoje, lhe teria dado ensinamentos sobre a escrita e o cinema. Eu li pouquíssimas coisas de Pier Paolo, mas eu o conheci bem. Foi a pessoa mais humana que encontrei. Ele era o pai de todos nós, dos borgate, e foi muito amado. Para nós era o cara que resolvia todas as situações. Dava algum dinheiro aos pobres, e, quando começou a ganhar um pouco mais, íamos sempre comer e ele convidava todo mundo. Era uma família alegre. E eu tenho certeza de que ele permanecerá para sempre, mesmo para aqueles que nunca leram nada dele.

Qual é o sentimento mais forte que ele deixou para você?

Me deixou o sentimento de uma grande guerra, de uma luta contínua. Mas, repito, é a pessoa mais humana que eu conheci. Não encontrei mais ninguém assim, alguém que pedisse a seus figurantes: “por favor, faça dessa maneira”. Era de uma doçura extraordinária, e é isso que mais me faz falta. Era um pai, entende? Alguém que te guiava para o caminho certo.

*Frigidaire – Revista cultural italiana, alternativa, publicada entre 1980 e 2008

**Borgate – Regiões periféricas no entorno de Roma, com algumas características particulares, onde Pasolini sentia encontrar gente mais genuína, tipos que misturavam pequenos trabalhos, espertezas e uma grande liberdade de viver.

*** Torpignattara – Região histórica ao sul de Roma, com sítio arqueológico que compreende muradas em terracota, chamadas Torre delle Pignatte e, por derivação Torpignattara. É uma zona citada por Pasolini em seu romance Meninos da vida (Ragazzi di Vità, 1955), em uma passagem em que ele menciona a “Borgata degli Angeli,Che si trova tra Tor Pignattara e Il Quadraro”.

**** Dialeto da região do Friuli, no nordeste da Itália, cidade de origem da mãe de Pasolini e onde ele morou com ela antes de mudarem para Roma, em 1950.

 

Leia também: http://tremdasletras.com/escritos-corsarios-trazem-as-polemicas-de-pasolini/

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Curtas

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  • O ano de 2020 marca o final do mandato de 12 dos 24 conselheiros do CNE, o Conselho Nacional de Educação. A primeira lista com sugestões de substitutos, deixada pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, provavelmente na correria a caminho do aeroporto, era composta principalmente por olavistas. Gerou resistência até dentro do próprio governo Bolsonaro. Diante do freio, puxado pelos militares, o ministro interino, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, está fazendo uma nova rodada de discussão para a escolha de outros nomes.  A Casa Civil será um dos principais interlocutores para definir a lista final. Se o padrão das escolhas continuar o mesmo de outras áreas, é provável que as escolas cívico-militares ganhem fôlego inaudito. Texto publicado em 25/06/2020

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