Texto republicado em 25/08/2020. Original publicado em outubro de 2015 na Revista Educação (www.revistaeducacao.com.br)
Foto: Tom Eversley/Iso Republic
O fenômeno é mundial, e não é recente. O lugar e a identidade do professor estão em xeque. Os salários, em sua grande maioria, são baixos. A carreira, pouco atraente. O respeito parece uma lembrança de outros tempos, vilipendiada pela exposição constante de vídeos na internet mostrando episódios de agressão em aula. Socialmente, apesar de muito se falar em valorização docente, ela se traduz, em termos práticos, por um desejo de incriminação docente. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos professores já tiveram sua condição profissional subtraída em processos avaliativos que os julgaram culpados de má e perniciosa conduta.
Por outro lado, os conhecimentos, ao menos no âmbito dos discursos sociais, estão mais valorizados – e acessíveis – do que nunca. A comprová-lo está aí o mundo virtual e sua inexauribilidade. Para que haja aprendizagem de tudo isso, dizem, é preciso apenas uma seleção criteriosa, indicações certas de acordo com o público e um bom empacotamento.
Nesse cenário, para que exatamente serviriam os professores? E, numa visão extrema, ainda serviriam para algo?
Na tentativa de uma resposta a essa questão, a pesquisadora Bernardete Gatti, da Fundação Carlos Chagas, nome de referência quando se fala em formação docente, recorreu, por ocasião do 2.º Congresso Nacional de Formação de Professores, realizado em Águas de Lindoia no longínquo ano de 2014, a ideias de um clássico da filosofia da educação: o livro Professores para quê? – Para uma pedagogia da pedagogia, do filósofo francês Georges Gusdorf, lançado em 1963.
Na obra, Gusdorf faz um erudito inventário das relações entre mestres e discípulos, recorrendo a grandes nomes do pensamento mundial ao longo dos séculos, dos gregos Sócrates e Platão ao famoso professor francês Alain, passando por Confúcio, Kant, Nietzsche e uma enorme constelação. Mais do que isso, destrincha quais as prerrogativas para que essa relação aconteça, suas limitações e sentidos.
“Peguei a ideia de que todo professor deve ser um mestre, dentro do conceito antigo de mestre, aquele que guia, que tem condição de levar o aluno a superar-se a si mesmo”, relembra Bernardete. Para ela, a questão central no livro é o diálogo que permeia a relação, ancorada na condição de que o mestre tenha um interesse profundo pelas pessoas em geral e por seus alunos.
Essa genuína preocupação com o outro permitiria um relacionamento frutífero para ambos, ao mesmo tempo próximo e separado, na medida em que, em todas as situações, o mestre é capaz de acrescentar uma palavra a mais a seu educando, acrescenta a professora. “Aí falei sobre as dificuldades que temos hoje de transformar professores em mestres. Isso, claro, tem que ver com as condições de trabalho, com as concepções das gestões e com a própria formação”, finaliza.
Outro fator que se constitui como empecilho para esse processo é a sobrevalorização dos conteúdos a serem aprendidos, em detrimento dos processos e do próprio significado dessa aprendizagem dentro de dimensões maiores, tais como a formação de valores morais (palavra que ficou tão desgastada ao ser confundida com o moralismo de ordem inquisitorial) e com o desenvolvimento ou formação do sujeito.
Mediador
Seria o professor, então, face a esse enorme acervo cultural, um mediador entre o conhecimento e o aluno? Essa ideia, apesar de não ser nova, tem sido cada vez mais propalada no meio educacional. Como bem explicita a pedagoga e superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Anna Helena Altenfelder, em recente artigo na revista Construção Psicopedagógica, essa mediação deve ser tomada a partir do contexto específico da escola, “constituído por determinantes culturais, sociais e políticos e entendido em sua historicidade”.
A ação do professor, nesse caso, é a de “organizar a relação do aluno com os objetos do conhecimento, (…) garantindo a aprendizagem”. Mas a aprendizagem, explica a autora, a partir de uma perspectiva vigotskiana, é um fator propulsor para o desenvolvimento do sujeito. Esse desenvolvimento tem dois níveis: o real, que mostra o que o indivíduo faz por si próprio; e o potencial, o que consegue fazer com a ajuda de outros. É nesse nível potencial que está “a essência da mediação docente”, escreve Anna Helena.
Esses conhecimentos, alerta Carlota Boto, professora de filosofia da educação da Faculdade de Educação da USP, não são aleatórios. “Não é um acervo qualquer, mas um acervo de conhecimentos selecionados historicamente pela própria escolarização, conteúdos de cultura que a escola considera adequados, que ela filtra e em certa medida os reinventa.”
E o trabalho com esses conteúdos, lembra Carlota (dialogando com Gusdorf), não tem como finalidade apenas a sua própria apreensão, mas a maneira pela qual se processa o contato com o conhecimento, que os transcende. “É esse o sentido da escola: a experiência de aprender.” Ou, como formulam Masschelein e Simons, autores de Em defesa da escola (Autêntica), o processo de formação do aluno – protagonizado pela ação docente – envolve um constante deslocamento do universo já conhecido por aquele indivíduo. A escola o impulsionará a “ir além do seu próprio mundo da vida por meio da prática e do estudo”.
Para que isso aconteça, é preciso que o professor, amparado pela instituição escolar, seja o que Bernardete Gatti chama de “um criador de espaços e relações”. Esses espaços e relações devem levar em conta valores, atitudes e comportamentos, tendo como objetivo maior a formação da ideia de civilidade e da consideração pelo outro. “A posse de conhecimento é boa quando tem um significado associado à preservação da vida humana e social”, frisa. O que vem ao encontro da defesa de Gusdorf do mestre como um ser pleno de humanidade, a qual busca repartir com seus discípulos.
Técnicos de futebol
Mas será que a sociedade contemporânea, tão interessada em resultados mensuráveis e rápidos, em eficiência produtiva, ainda tem ouvidos para esses grandes mestres, capazes de mudar o rumo de uma vida, nem sempre para a direção mais óbvia?
Pela visão cáustica de Julio Groppa Aquino, professor de psicologia da educação da Feusp, a sociedade não tem o menor interesse nos professores e não espera nada deles. Tanto assim que os únicos a serem chamados hoje de professores são os técnicos de futebol, diz.
“Esse professor socrático desapareceu do mundo contemporâneo, não existem mais condições fáticas para ele existir. Porque ninguém escuta o professor, ele é um ser abandonado, tem algo da mendicância pedagógica, para criar uma imagem do ponto de vista do hábitat pedagógico, o ambiente escolar”, sentencia.
Tudo isso estaria ligado – e não é difícil aceitar essa análise – a um declínio das motivações e crenças em grandes verdades que dessem sentidos maiores à vida e pelas quais valesse a pena lutar ou até mesmo morrer. É a mesma ideia de uma verdade profunda e derivada da experiência de uma vida a que se refere Gusdorf, uma verdade de tal densidade humana que seria capaz de mobilizar o respeito e a admiração do outro.
No âmbito da escola, diz Groppa Aquino, essa negação está ligada à predominância da pedagogia, à técnica de ensinar e à mediação, em lugar da verdade humana mais profunda. “Um bom professor dispensa por completo o âmbito pedagógico, pois é algo de outra natureza que está lá”, fala, referindo-se à relação entre professores e alunos. E completa: “a pergunta é, para qualquer pessoa: quando foi que você se deparou com um professor que teve o condão de transformar a tua vida?”.
Isso é tanto mais difícil quanto as famílias esperam que, de certo modo, as escolas se adaptem a seus hábitos e valores, principalmente as de classe média que matriculam seus filhos em escolas privadas. Um dos indícios disso é a cobrança de pais a professores por notas baixas de seus filhos. Como relata Tarso Loureiro, professor de geografia do Colégio Oswald de Andrade, em São Paulo, um dos problemas atuais de educar é a ojeriza a qualquer tipo de frustração ou sofrimento, e pais que querem poupar os filhos de vivê-los. “Custo a crer que exista algum tipo de processo educativo, entendido em sua complexidade, que não passe por sofrimentos e decepções. A gente tem de passar privações, negações, decepção. Isso não quer dizer transformar o processo educativo num massacre”, avalia Loureiro.
Em acréscimo a esse cenário, Groppa identifica um espraiamento da função pedagógica pela sociedade como um todo, retirando e deixando de reconhecer a especialidade da escola. Novamente, algo difícil de contestar, tal o número de instâncias que hoje oferecem cursos e formações as mais diversas.
Restaria então ao professor a função de “gestor de condutas”, diz Groppa, realçando que isso é requerido da educação infantil à universitária, e pressupõe uma neutralidade que anula a função narrativa do professor, aquela que parte de um ponto de vista da experiência e que garantiria o teor crítico da ação docente.
Burocracia
Mas os empecilhos ao exercício da docência vão além. Bernardete Gatti, da Fundação Carlos Chagas, chama a atenção para um fator institucional que bloqueia a ação criativa do professor, a burocracia. Há muitas normas e impeditivos para que o professor desenvolva projetos e programas com seus alunos que respondam ao seu diagnóstico de cada turma, de cada aluno.
Bernardete cita um exemplo pessoal, de quando era uma jovem professora primária. “Minha turma tinha certa dificuldade com a escrita, e eu havia notado que eles se alfabetizavam melhor com música. Gostavam, sabiam as letras, mas não sabiam escrever. Eu me aproveitava disso para introduzir a escrita. Mas fui proibida de fazer porque a escola tinha de ficar em silêncio!”, relembra.
O exemplo vem de dentro da escola, mas outros podem ser citados a partir da organização do sistema de ensino. “Fazem tudo para nos tirar da sala de aula. Questões da nossa vida funcional, como a entrega de um diploma ou outras relativas ao RH, demandam nossa presença física, quando poderíamos resolver pela internet”, acrescenta Maria Izabel Yaginuma, professora da rede municipal de São Bernardo do Campo.
Retomada
Mas se há sobreposições acerca do papel do professor e sobre onde e como educar, há também pontos a serem lembrados que podem ajudar na reconstrução do espaço do professor, seja ele mais “técnico de aprendizagens”, mediador ou o “grande mestre”.
A primeira coisa é que a escola constitui – ou deveria constituir – uma civilização à parte, a “civilização escolar”, nos termos de Gusdorf. Isso quer dizer que ela tem regras e dinâmicas próprias, espaços definidos para a sua função e um tempo particular, que deve, por força, diferenciar-se do tempo da sociedade.
Essas características constituem um conjunto de garantias para que professores e alunos possam entrar em relação de acordo com o que objetivam, a saber, a formação da autonomia dos estudantes, construída a partir da entrada em contato com o acervo cultural da humanidade, a apresentação do mundo de uma geração para outra.
Na edificação dessa civilização, é preciso que os professores não trabalhem isolados. “O [educador português] António Nóvoa diz que é preciso que a escola tenha uma ética da colegialidade, que os professores exercitam bastante em termos sindicais, de defesa da categoria, mas que muitas vezes faz falta no que diz respeito à partilha de maneiras de ensinar, de metodologias de ensino, de repertórios culturais, especialmente daquilo que dá certo”, avalia Carlota Boto, da Feusp.
Para que não haja dúvidas sobre como fazê-lo, a professora ressalta que não se trata de criar fórmulas a serem repetidas mecanicamente, mas sim de propiciar diálogos que fertilizem a noção de professor reflexivo. “Não se pode criar fórmulas homogêneas que independam das variáveis sociais, culturais e econômicas”, diz.
Ainda na linha das especificidades escolares, a singularidade da escola também é lembrada quando se quer criar atrativos para que os alunos sejam seduzidos no ensino dos conhecimentos. Carlota lembra que os antigos jesuítas, ao criarem seu método, diziam que os novos atrativos do ensino não deveriam ser os da vida cotidiana. “O ensino deveria atrair com aquilo que é criação do próprio ensino, ou seja, a cultura letrada. Seria preciso transformá-la em objeto de curiosidade.”
Tempo, tempo, tempo
Fazer da vivência escolar um momento de suspensão do tempo da vida cotidiana e de tudo que ela embute – expectativas, cobranças, desejos, frustrações – é uma das chaves para que o professor possa atuar de forma mais próxima ao aluno. O tempo da escola, assim, é um tempo presente que suspende o passado e todas as suas cargas, o futuro e seus medos. No texto já citado, Simons e Masschelein mencionam o livro Diário de escola, do professor e escritor francês Daniel Pennac, em que ele conta tanto suas desventuras como aluno, como seu sucesso como professor. Para alcançá-lo, conseguia libertar os estudantes do passado, ditado pela precariedade, e do futuro de poucas perspectivas.
Para os autores, a escola cria igualdade na medida em que constrói esse tempo livre, que remove do seu espaço o mundo externo e permite a fruição do presente. “A escola é um meio sem um fim e um veículo sem um destino determinado”, escrevem.
Vendo esse tempo como impossível nos dias correntes, Groppa Aquino, da Feusp, explica-o bem: “O tempo pedagógico não é um tempo de Cronos, e nem um tempo de Kairós. É o tempo de Aion, é o tempo da simultaneidade, um tempo outro, o tempo do diálogo entre um professor e um aluno”, diz, recorrendo às noções temporais da Grécia Antiga. Cronos é o tempo físico, mensurável; Kairós é o instante da oportunidade, o tempo certo; Aion é o tempo sagrado e eterno, sem medida precisa, ilimitado.
Por isso, a invasão das angústias do tempo digital, o tempo da instantaneidade, é um enorme desafio no âmbito da escola. Ela briga entre sua assimilação, com a incorporação dos artefatos que o simbolizam, ou sua rejeição, para que preserve esse espaço de fuga para a construção não propriamente do conhecimento, mas dos sujeitos em formação.
Identidade
Nesse quadro, o que pode constituir a identidade docente? Bernardete Gatti localiza um problema de origem nessa questão: o fato de, historicamente, a formação de professores ocorrer em unidades variadas nas universidades brasileiras. Ao contrário de diversos outros países, que a reúnem num instituto único, inclusive para as licenciaturas de biologia, física, matemática, história etc., no Brasil as faculdades de educação formam apenas os licenciados em pedagogia. Aos outros, ensinam apenas as disciplinas ligadas aos fundamentos da educação. Assim, o licenciado em química costuma identificar-se como químico, não como professor de química, quando sua tarefa central é ensinar, e não trabalhar em laboratório.
E essa formação e esse espírito de corpo nascem justamente na universidade, durante a formação do professor. Nesse processo, diz Bernardete, o professor tem de ter uma boa formação cultural para responder a uma atividade muito complexa. Nesse sentido, a contraposição que tem sido feita entre fundamentos da educação e metodologias de ensino não procede.
“Ele precisa de conhecimentos fundantes de filosofia, sociologia, psicologia e história da educação, que deem uma base interdisciplinar compreensiva do ser humano em desenvolvimento na sociedade.” E precisa conhecer práticas socioeducacionais associadas a essas perspectivas. “Não estou falando que tem de conhecer a ‘tecniquinha’ disso ou daquilo. Tem de conhecer práticas importantes para suas relações com os alunos, que lhe deem possibilidade de refletir. Caso contrário, será um executor de protocolos”, defende.
Deter o conhecimento de como ensinar, relacionando-o ao contexto de onde o fará, levando em conta as dimensões cognitiva, política, cultural e afetiva, é o que pode dar identidade ao professor, vislumbra Anna Helena, do Cenpec. “É o que pode fazê-lo acreditar em si mesmo”, diz, acrescentando que o ato de refletir sobre o próprio trabalho, repensando, a partir disso, a prática e modificando a forma de “pensar, agir e sentir”, é um fator de ampliação de sua consciência.
Saídas e descaminhos
E o que, então, pode responder à pergunta inicial – resposta talvez já insinuada em muitas entrelinhas deste texto – acerca do porquê dos professores? Entre muitas outras possibilidades existentes, esquadrinhamos duas possibilidades.
Anna Penido, diretora do Instituto Inspirare, organização que busca unir inovação e educação difundindo novas referências e práticas, arrisca resumir em três grandes frentes a missão do professor. Em primeiro lugar, a de ser um adulto de referência; em segundo, a de fazer a curadoria do conhecimento; e, por último, a de ser um designer da aprendizagem.
Apesar da linguagem mais… inovadora!, a exposição tem diversos pontos de contato com visões anteriores. O exemplo do adulto vem acompanhado de uma relação de afeto para que o estudante possa mirar-se em quem confia. A ideia de curadoria está ligada à de mediação. E o designer é um guia, ou, nas palavras de Anna Penido, “um cocriador, um propositor, alguém que consegue de fato fazer a diferença na vida daquele aluno”.
Ela ressalta ainda a importância de os professores constituírem redes de troca em que haja mentoria casada, em que “alguém com mais experiência vai ajudar outro com menos experiência, e depois esses papéis se invertem”. “Redes em que haja planejamento conjunto, partilha de referências e recursos”. Caso tivesse de aconselhar um jovem professor que acabou de se licenciar, Anna diria a ele duas coisas: para estar atento às novas formas de combater o esgotamento dos atuais modelos educacionais e para sempre dar ouvidos à experiência. “Juntar a experiência com o frescor é uma boa mistura”, finaliza.
De outro lado, Julio Groppa, sob forte influência do pensador francês Michel Foucault, propõe a introdução de uma pedagogia negativa, principalmente no processo de formação docente.
“Por honra da minha profissão, tenho de ferir a todos e a cada um. Ferir no sentido de desgovernar os saberes. Minha função é a de ser desconstrutor de saberes, ou produtor de contrassaberes, por essa razão digo que isso é uma pedagogia negativa. Não estou aqui para ser um erudito, e sim para criar problemas”, resume.
O caminho é o inverso, mas o objetivo é o de criar professores que pensem por si próprios, que reflitam. E que não reproduzam acriticamente o cânone que lhes é ofertado nas faculdades. Mostrando o funcionamento das engrenagens de pensamento, abrindo-as, vê-se não só o que dá liga no sistema, mas também onde se esconde a sujeira que atrapalha sua rotação.
Numa sociedade tentada a produzir cartilhas, manuais, códigos – até mesmo de ética, sem reparar no contrassenso que isso significa – ensinar a pensar, inovando ou desconstruindo saberes, é uma missão e tanto. Mas a grande recompensa, que é o reconhecimento do aluno mobilizado pela ação de um professor, pode demorar anos para vir à tona. Talvez quando ele, professor, já não esteja mais aqui. Então, o melhor é fazer por convicção, seja ela qual for.
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