Por Rubem Barros
Num momento em que os debates públicos trazem ao primeiro plano questões como valores e tradições familiares, olhar para a cultura do outro pode ser uma ótima oportunidade de identificar o que não conseguimos enxergar mirando em nós mesmos. A obra do cineasta japonês Hirokazu Kore-eda, diretor do recente Assunto de família (Manbiki Kazoku, 2018), indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, se presta a esse exercício de forma exemplar.
Não que o tema da família e suas disfuncionalidades seja ausente ou raro no cinema mundo afora. Os exemplos de abordagens as mais variadas abundam, do Tudo bem (1978), de Arnaldo Jabor baseado em Nelson Rodrigues, a Festa de família (Festen, 1998), de Thomas Vinterberg, marco do movimento Dogma 95. Família é sempre um caldeirão em permanente ebulição.
Kore-eda está longe tanto do humor escrachado de um como da agressividade flagrante do outro, ainda que, como os cineastas do Dogma, incorpore sua mão de documentarista à ficção. Seu cinema está mais próximo do mestre japonês Yasujiro Ozu (1903-1963), um artista cuja delicadeza parece nos levar, plano a plano, ao que é essencial nos nossos relacionamentos e nas nossas vidas, sempre por meio das repetições do cotidiano. Dele, ainda nos faz relembrar a câmera baixa, na altura dos personagens, em algumas cenas de interior.
Em Assunto de família, esse cotidiano tem suas peculiaridades: começamos por conhecer uma família sui generis, que vive numa casa acanhada e recorre a pequenos furtos e golpes para dar conta de suas necessidades cotidianas. Logo de início, vemos um homem e um adolescente em ação praticando esses golpes em um mercado, um distraindo a vigilância para a ação do outro. Em casa, há uma velha senhora (avó?), além da esposa e de uma jovem mais velha que o garoto, corpo já com formas de mulher.
Ao acolher uma pequena menina abandonada, de apenas 5 anos, a família vê essa rotina ser quebrada. O homem a trata com carinho e a incorpora às atividades do dia a dia. É como se o ensino dos truques de seu ofício significasse o amor que pode lhe dar. Afinal, cada um divide aquilo que crê ter de melhor. E ele o faz com afeição.
Isso deixa o menino enciumado, pois subitamente tem sua rotina de proximidade com o pai quebrada. Bem treinado pelo discurso dos adultos, o garoto assimilou a defesa dos laços familiares: só precisa ir à escola quem não estuda em casa. Para ser poupado do sacrifício, ele dedica suas horas diárias aos livros, metido sob as cobertas, até que possa ir ao laboratório das ruas.
Já a velha senhora estranha as marcas de agressões no corpo da menina e cuida dela como de uma neta. Enquanto isso, a esposa reclama a cada dia do trabalho como doméstica e teme problemas pela nova “filha”. A jovem adolescente continua a sonhar e a fazer o que pode para garantir seu sustento, o que inclui despir-se à frente de um espelho para desconhecidos.
O imbróglio começa quando, casualmente, a família vê na TV um noticiário em que aparece uma foto da garotinha, com a informação de que ela é filha de pais ricos que a estão procurando. Ela, que pouco fala, parece estar bem ali, com mais atenção do que jamais teve.
Assim como em Pais e filhos (Soshite chichi ni naru, 2013) entra em cena um tema que angustia o diretor: o exercício da paternidade. Tanto em um filme como no outro, há a questão sobre o que cria os vínculos afetivos mais profundos, como lidamos com o peso da responsabilidade de ser pais (tema, de resto, que parece ser um dos que mais incomodam a geração de Kore-eda, nascido em 1962), e o que dá legitimidade à paternidade. Como ele próprio diz em entrevista a Luiz Carlos Merten (A luz de Kore-eda e a beleza dolorida de Pais e filhos, O Estado de S.Paulo, 1/11/2013), “A paternidade é consanguínea, mas também é um dado cultural. E foi sobre isso que quis refletir com essa história” (em referência a Pais e filhos).
Em Pais e filhos, dois casais, um bem-sucedido e outro de uma classe média mal remediada, descobrem que os respectivos filhos foram trocados na maternidade e passam a conviver com os filhos biológicos. Aceitação e rejeição entram em campo para mostrar o que cada adulto efetivamente valorizava na relação com as crianças.
Seja em Assunto de família ou em Pais e filhos, Kore-eda parece mostrar que não há nada mais artificial do que o discurso institucional que sustenta a primazia da família e de seus valores. Ela tanto pode ser efetivamente o esteio emocional e afetivo de que precisamos, como também o pesadelo recorrente de nossas vidas, ou ainda um vazio constante que tentamos preencher ao longo de toda a existência. Na maioria das vezes, uma busca fadada ao insucesso.
Ficha técnica
Assunto de família (Manbiki Kazoku), Japão, 2018,121 minutos.
Direção: Hirokazu Kore-eda. Com Lily Franky, Sakura Andô e Kirin Kiki.
Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro