A primeira vez que ouvi falar em Sérgio Rizzo foi em 1988. Eu havia voltado a São Paulo fazia pouco tempo e arrumei um emprego na redação do Guia de Vídeo, publicação da falecida Editora Nova Cultural, então um potentado, dirigida pelo crítico Luciano Ramos. Na redação itinerante das torres do Brasilinvest, na Avenida Faria Lima – uma das maiores diversões do pessoal parecia ser mudar de andar, foram três vezes em três meses –, o bonachão Ramos era secundado pelo fiel escudeiro Ermetes Ciocheti.
Logo nos primeiros dias, ao conversar com eles sobre os verbetes, me inteirando acerca do que sua escrita devia e não devia ter, fiquei atento ao vaticínio do editor: aquele tal de Sérgio Rizzo, que trabalhava em um jornal de bairro, vinha se revelando como um dos melhores, senão o melhor, colaborador do Guia.
Sérgio devia estar perto dos 23 anos, já com algo em torno de sete anos de estrada. Durante a produção do Guia não tive oportunidade de conhecê-lo, o que só foi acontecer algum tempo depois, na casa de nossa amiga comum, a editora e tradutora Heloísa Jahn, alguém em torno de quem sempre houve e haverá pessoas interessantes.
Anos depois, ao saber que ele era o coordenador de um curso de Rádio e Televisão na Faculdade Cásper Líbero, me animei a retomar a vida acadêmica que havia abandonado 18 anos antes. Nosso convívio ali durou pouco mais de um semestre, pois uma greve de professores seguida de uma demissão coletiva acabou por trocar várias das caras que circulavam pela faculdade. Lá se foram Sérgio e outro amigo comum que eu iria conhecer pouco tempo depois: o jornalista alagoano Luiz Costa Pereira Jr., o “cabra”, criador da revista Língua Portuguesa (2005-2015).
Pois bem, para não encompridar muito a apresentação: dois anos depois, em 2005, Rizzo assumiria a revista Educação e passaria a me chamar com constância para o trabalho de free-lance. Sem o saber, estava me abrindo uma grande estrada profissional, pois eu o sucederia dois anos depois.
Desde então, nosso convívio tornou-se bem mais frequente – ele permaneceu como colaborador de Educação, a não ser por um curto intervalo – e nesse meio-tempo tivemos umas tantas conversas sobre os interesses comuns: cinema, literatura, jornalismo, futebol e, entre todos o mais aziago, o Brasil.
A proposta deste papo/entrevista é percorrer um caminho de formação intelectual e crítica, a trajetória de alguém que transitou e transita pelos meios acadêmico e jornalístico – além de recentemente também ter enveredado em experiências como realizador no cinema e no teatro. Anos atrás, numa de nossas conversas sobre possíveis projetos, mencionamos um livro organizado por outro interlocutor frequente de Rizzo (mencionado mais abaixo), o jornalista e professor Heitor Capuzzo. O livro era O cinema segundo a crítica paulista (Editora Nova Stella, 1986), reunião de depoimentos e textos de 15 nomes atuantes da crítica cinematográfica de então.
A entrevista a seguir é, de certa forma, tributária do livro original e do outro, acalentado e não realizado. Algo como um pontapé inicial que não permite de maneira nenhuma supor que resultará em gol. Principalmente pelo fato de que esta conversa inicial – que deverá ter ao menos uma sequência – levou meses para ganhar forma escrita e fazer parte dos textos iniciais do site Trem das Letras. Mas, como a conversa com Rizzo – realizada em uma tarde atipicamente ensolarada do inverno paulista, em julho de 2018 – demonstrará a seguir, tomara que isso aconteça, pois é o momento de dar espaço para gente desse calibre.
Sérgio Alberto Rizzo Júnior é jornalista e professor. Trabalhou em diversas editoras e escreveu para muitas publicações, entre elas os principais jornais brasileiros e revistas nacionais de cinema. É mestre com dissertação sobre Woody Allen e doutor com tese sobre educação audiovisual e a formação de professores na educação básica, ambas defendidas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e orientadas pela professora Dora Mourão. Compõe a comissão organizadora de festivais de cinema e ministra cursos livres sobre cinema.
Trem das Letras – Você começou a escrever sobre cinema muito cedo…
Sérgio Rizzo – Com 16 anos.
Quando é que passou da condição de alguém que escrevia sobre cinema para a de crítico de cinema?
Não saberia definir exatamente quando, mas em algum momento na década dos meus 20 anos, quando já tinha uma experiência acumulada de produção de textos e comecei a reconhecer um repertório que me permitia fazer conexões mais complexas, sendo que esse repertório não era só de cinema, mas de literatura, de ideias e até mesmo de experiências. Diria que em torno do final dos meus 20 anos, perto dos 30. Outro jeito de tentar localizar isso no tempo é dizer que foi uns 10 anos depois de eu ter começado a escrever.
O teu começo foi em jornal de bairro?
Comecei na extinta Gazeta da Vila Prudente. Foi uma oportunidade para escrever sobre cinema. A partir daí, fui trabalhar como repórter, como redator e continuei a escrever sobre cinema. Lá e num outro jornal do mesmo editor, o Jornal da Vila Formosa, JVF. Hirão Tessari era o nome dele.
E depois disso?
Trabalhei na redação de jornal até terminar a faculdade. Comecei um ano antes da faculdade e fui até o final, uns cinco anos de lida diária. Depois, fui trabalhar na Abril. Eu não estava mais na redação do jornal, mas continuei a fazer essa coluninha de cinema até o jornal fechar, não lembro direito quando foi, acho que nos anos 90.
Quais foram seus primeiros referenciais críticos, aqueles que começaram a abrir o teu olhar?
Nesse começo, eram, no conjunto, as pessoas que militavam na crítica em São Paulo. O primeiro jornal que li regularmente foi o Jornal da Tarde. Os críticos eram o Lauro Machado Coelho, a Pola Vartuck, o Luciano Ramos, Rubem Biáfora no Estadão, o Rubens Ewald Filho no Estadão e Jornal da Tarde, Edmar Pereira (JT), o Orlando Fassoni na Folha, um pouco depois o Inácio Araújo, na Folha… Esse conjunto, todo mundo ao mesmo tempo agora, criando uma certa ideia, para quem estava começando, de como lidar com isso. Lembro, inclusive, de notar como esses caras eram diferentes entre si, como tinham modos diferentes – quase não tinha mulher, tinha a Pola Vartuck. Ela, aliás, se encaixa nessa questão das diferentes abordagens sobre os filmes, e, portanto, do entendimento da função do crítico, mesmo em jornais diários da mesma cidade. A Pola Vartuck tinha um jeito muito peculiar de chegar ao filme. Posso estar enganado, mas acho que era pelo fato de ela estar um pouco mais distante de um certo formato tradicional de crítica daquela época. Um modelo de texto em que você começava apresentando o diretor, situando o filme. E ela entrava – essa é a lembrança que guardei – por umas janelas não tão convencionais. E tinha a turma do textão jornalístico mais classudo, mais erudito, com referências que foram importantes – sobre livros, autores, filmes.
[As influências] foram desse jeito que estou te falando: um monte de gente que escrevia em São Paulo, pessoas que depois eu fui conhecendo, e o conjunto dos textos que esses caras publicavam. E outras pessoas também. Lembro que o Jornal da Tarde tinha o Caderno de Sábado, e muitas vezes, quando um filme repercutia, saía um texto de uma página, mas uma página corpo 8. Fico imaginando quantos mil caracteres tinham aqueles textos. Enfim, uma maneira de lidar com aquele negócio com um fôlego que não era o fôlego da crítica. Isso tudo num primeiro momento da minha carreira.E desses todos, com quem você sentiu uma afinidade maior?
Tenho a impressão de que nessa época – estou tentando mapear, acho que ele começou a escrever na Folha em 83 ou 84, então estamos falando de meados dos anos 80 – me sentia mais estimulado pelos textos do Inácio Araújo, pelo que havia ali de proposta, de exploração, de diálogo com o filme.
Quer dizer, nesse primeiro momento, tuas referências eram de textos críticos, e não de reflexões sobre o papel do crítico, textos mais teóricos. Quando você tomou mais contato com esse tipo de reflexão, algo que se voltasse mais à questão do método de olhar os filmes?
Se eu tivesse feito graduação em cinema, talvez tivesse chegado um pouco mais cedo a isso, mas fiz graduação em jornalismo. Terminei o jornalismo em 1986 e comecei a fazer o mestrado em 1989. Esse contato aconteceu nesse momento, quando entrei no campo acadêmico do cinema, e aí trombei com outro tipo de produção crítica. Não que eu não conhecesse. Estou falando e relembrando: já havia descoberto quem era Paulo Emilio Salles Gomes e lido muita coisa dele, inclusive os dois volumes do Suplemento Literário [reunidos em Crítica de cinema no Suplemento Literário, volumes 1 e 2, Editora Paz e Terra, com textos publicados semanalmente pelo autor entre os anos de 1956 e 1965 em O Estado de S.Paulo]. Ele reunia filmes que eu conhecia [e os textos me interessaram]. Isso foi nessa fase da turma da imprensa. Então havia um contato com uma produção que não era a do dia a dia. Também lembro quando saiu o livro com as críticas do presidente [da Cinemateca Brasileira e também crítico do Estadão] Francisco Luiz de Almeida Salles [Cinema e verdade, Companhia das Letras, 1988].
Havia também os livros de Georges Sadoul… as referências eram mais restritas.
Vamos lá, tentar visualizar onde eu conseguia essas coisas. Quando eu morava na Vila Prudente, tinha uma biblioteca pública perto de casa, na Vila Formosa, a Paulo Setúbal. Com certeza, eu decorei os livros todos de cinema que havia por lá. Em algum momento da adolescência, criei o hábito de toda semana ir à biblioteca pegar alguma coisa, e devolver – e era self service, você ia pra estante e puxava as coisas. Lembro a descoberta ali das prateleiras de cinema, de conhecer um por um, mesmo que não tenha lido. Mas via o que era, puxava, dava uma olhada, “obrigado, isso eu não quero”, ou “não quero agora”. Alberto Cavalcanti, por exemplo, Filme e realidade [1957, CEB], eu li ali. Nem tenho esse livro. Gostaria até de dar uma olhada nele agora. Mas li nesse tempo, aos 16, 17 anos, na biblioteca pública. As coisas do Georges Sadoul também. Li alguns livros de introdução à linguagem do cinema. Mas nada sobre crítica, nem de cinema nem de arte. Era contato com produção crítica, não produção reflexiva a respeito da crítica.
No início da carreira, aos 23 ou 24 anos: a escrita assídua sobre cinema em jornais de bairro ajudou no amadurecimento do texto e do interesse pela cultura em geral. Foto: Arquivo do entrevistado
E você começa a lecionar depois de terminar o mestrado ou antes? E começa lecionando jornalismo ou cinema?
Antes. Um pouco depois de ter começado o mestrado, em 90. Eu entrei em cursos de jornalismo, dando aulas de disciplinas ligadas ao jornalismo. Demorou um pouquinho para eu começar a dar aulas de cinema. Se não estiver enganado, comecei a dar aulas de cinema na Universidade Metodista, onde era professor do curso de jornalismo, em cursos livres, que eu propus, mais ou menos na mesma época em que estava fazendo mestrado na ECA, onde também comecei a dar cursos livres, sob o chapéu da Dora [Mourão], que era minha orientadora, oferecidos pelo departamento. Não lembro como chamava o departamento, se era o CTR. Vamos considerar que há uma segunda fase, em que eu entro no mestrado, começo a dar cursos de cinema, entro em contato com outra bibliografia, me aproximo, como aluno, de figuras importantes – aí, sem dúvida, a mais importante é o [professor e crítico] Ismail [Xavier] – e há um salto na forma como começo a lidar com o assunto. Conversas. Acho que grandes primeiras conversas sobre esse assunto começo a ter ali nesse momento. Heitor Capuzzo, crítico durante muito tempo do Diário do Grande ABC, eu o conheci numa época em que ele era programador do Cineclube Bixiga, nos anos 80, acho que em 80 ou 81. Lembro muito bem de uma sessão de O homem que virou suco [João Batista de Andrade, 1981], antes de o filme estrear. Teve uma sessão lá no Bixiga, programada e apresentada pelo Heitor, com a presença do João Batista de Andrade. Esse tipo de experiência teve muita importância. Uma descoberta de que, em São Paulo, não era preciso nem ter dinheiro para acompanhar esse circuito de exibições com debates, pré-estreias etc. Lembro que descobri que o MIS [Museu da Imagem e do Som] sediava muitas pré-estreias, que não iam pro jornal, mas que eram abertas. Uma coisa meio esgarçada, engraçado isso. Não tinha ninguém checando a entrada para ver se você tinha ou não convite para a pré-estreia, e talvez não se devesse nem chamar de pré-estreia, fosse apenas uma primeira exibição do filme pros amigos em São Paulo. Assisti a muitos filmes lá assim, pois frequentei o museu direto por alguns anos, vendo toda a programação de cinema deles. Acho que era por isso que eu sabia das pré-estreias. Por exemplo, eu estava lá e às 8h da noite ia passar O homem do Pau-Brasil [1982], do Joaquim Pedro de Andrade – lembro direitinho dessa sessão, estava cheeeeia de gente.
Mas vamos usar o Bixiga como exemplo, porque ali houve uma revelação, que acho que começou lá: como funciona um cineclube – exibição acompanhada de conversa. Nesse momento em que descubro o Bixiga, o Heitor estava lá, nos conhecemos, nos aproximamos, viramos amigos.
Era um período importante na vida do país, do ponto de vista político.
É, abertura, ainda antes da retomada das eleições diretas para os governos estaduais, em 1982. Essa descoberta, que é uma descoberta da crítica, mas em outro formato que não o do texto, e sim de alguém que apresenta uma leitura sobre o filme. Vi o Heitor fazer isso e pensei: “que legal, quanta coisa eu tô descobrindo com o que esse cara tá falando. Nossa, acabei de ver esse filme e não tinha sacado isso que ele tá falando!”
Uma ampliação do olhar…
Exato. Em termos estéticos, políticos, sociais. Essa experiência foi muito legal. Isso acontecia no Bixiga, no MIS. A Biblioteca Mario de Andrade tinha umas exibições regulares e gente falando sobre filmes, o Centro Cultural São Paulo, um circuito que conheci no final da adolescência.
Mas voltando ao Heitor…
Então, eu o conheci nessa época. Depois, mais tarde, eu já estava nesse período de mestrado, ele já tinha feito mestrado, talvez estivesse fazendo doutorado, aí lembro uma conversa em que ele me disse: “Não dá mais para escrever em jornal”. Não lembro exatamente o termo, mas ele quis dizer que era algo muito leve, que ficava na superfície. “Não consigo mais fazer isso com o filme, preciso tratar de outro jeito.”
Era algo mais acerca do espaço limitado, ou de não ter tempo de respiro? Ou as duas coisas?
As duas coisas, com certeza. Era ver um filme de manhã e à tarde ter de escrever, ou no dia seguinte; e o espaço, restrito. Mas também o tipo de cobrança que ele tinha onde ele escrevia – que talvez não houvesse em outros lugares, mas lá havia. Era a cobrança de um tipo de texto que estivesse ao alcance de um espectador médio que se interessa por cinema, mas não necessariamente domina certos conceitos e informações. Ter de tentar falar com todo mundo. Isso incomodava o Heitor. Ele estava querendo ter outro tipo de conversa, com outro tipo de pessoa, e em outros termos, digamos. É justamente o momento em que ele estava deixando de escrever e virando professor. Prestou concurso, se não me engano foi primeiro para o Espírito Santo, depois para a Federal de Minas Gerais e agora está em Cingapura, professor de uma universidade de lá. Feliz, pela última conversa que eu tive com ele. Enfim, estava deixando a imprensa pelo mundo acadêmico, considerando que o exercício da crítica, para ele, poderia ser obtido de modo mais satisfatório no meio acadêmico do que na imprensa. Na época, eu entendia até o capítulo 2 o que ele estava dizendo. Hoje, entendo plenamente o que ele sentiu. Com outras características, é um pouco o incômodo que eu senti, não nos termos dele, mas que eu não queria mais ver 6, 7, 8 filmes que entram em cartaz na semana.
O Antonio Candido dizia que a docência foi um grande exercício crítico para ele. Também te ajudou? Mudou a tua perspectiva em relação ao que você escrevia?
Consigo lembrar a sensação que tive nessas primeiras experiências como professor de cinema em cursos livres. Num certo sentido, aquilo era a mesma coisa – dar aula sobre cinema e fazer crítica de cinema. Só que com um grau de exigência incomparavelmente maior do que o que me parecia ser o da imprensa. A partir do momento em que mergulhei em coisas como preparação de curso, manuseio de bibliografia e organização de ideias em torno da obra de um diretor ou de um filme específico, dei um salto. É outro mundo. Hoje, quando estou com os pés mais firmes nesses dois campos, o da imprensa e o do ensino – o mundo das aulas sobre filmes, que para mim são críticas sobre filmes, exercício da crítica –, quando olho para textos sobre filmes publicados em jornais e revistas, dá vontade de dar risada. É você trombar com uma afirmação do autor do texto e imaginar como ele sustentaria aquilo se estivesse na frente de cinco ou seis pessoas, e não escondido por trás de uma assinatura de jornal, ou na internet, onde no máximo alguém vai fazer comentários. Há frases e afirmações tão despropositadas, tão desancoradas de qualquer referência de ideia – não falo nem bibliográfica, mas do mundo das ideias – que fico imaginando que seria destroçado em uma aula. Numa ou outra ocasião eu vi isso na vida, gente de imprensa numa circunstância pública se ver numa saia justa em função de uma pergunta que vem da plateia e o cara absolutamente não sabe lidar com a pergunta, só que a pergunta tem a ver com algo que ele escreveu.
De vez em quando as pessoas me perguntam o que é o crítico. Minha compreensão do crítico é a de que ele é um pesquisador. O crítico de literatura é um pesquisador de literatura, o de música um pesquisador de música, o de cinema é um pesquisador de cinema. Alguém que escreve a respeito do que está pesquisando, organiza cursos e falas sobre isso, em cinema pode ser também alguém que faz filmes sobre o que está pesquisando. O grande exemplo, lá em cima, no Olimpo, talvez seja o do Godard, que faz filmes de crítica de cinema. Mas é um pesquisador, o tempo todo antenado, lendo, vendo… É impossível acompanhar, ler e ver tudo. Evidentemente, cada pesquisador faz um recorte ali dos seus interesses, das coisas que lhe falam mais ao coração, ou ligadas à sua atuação profissional. É um pouco como me vejo, como um pesquisador. Aqui solto alguma coisa que escrevi, ali solto um curso ou um seminário, ou vou participar de um debate e alinhavo algumas coisas. O fato é que a experiência como professor mudou completamente o como eu vejo o exercício da crítica na própria imprensa, reconhecendo que há limitações, mas que elas não podem servir de desculpa. Se você não pode escrever um texto que se sustente de um dia para o outro, você não pode fazer isso, tem de ir fazer outra coisa da vida.
Quando foi meu professor de linguagem cinematográfica [em 2003, no curso de Rádio e TV da Cásper Líbero], você começava por mostrar uma morfologia do filme. Mais ou menos algo como identificar um mapa relativo à forma, para dele ir ao sentido. Além da identificação de estruturas básicas que compõem a linguagem, quais são os outros passos iniciais para se chegar ao sentido do filme?
Você está falando de uma experiência de mais de 15 anos. Vou comparar com algo que faço neste momento, que é dar aula de cinema no Colégio Augusto Laranja, para turmas de 8º ano, a alunos de mais ou menos 13 anos. Já estou no quarto ano como professor lá, já tendo dado aulas para seis turmas diferentes, e sempre experimentando. São aulas que duram um semestre, aí troca a turma. A cada semestre experimento algo novo, mas o andamento geral é mais ou menos o mesmo: começamos com uma longa conversa, depois materializada em texto, sobre o que eles veem, ouvem, leem e quanto tempo eles dedicam ao computador, à televisão. Nesse curto espaço de tempo, caiu loucamente o número de horas que essas crianças, nesse recorte de classe média alta, dedicam à televisão. Hoje, eles veem imagens em tablets e celular, majoritariamente. Faço o mapeamento desse consumo de cultura, de maneira geral, mais especificamente de cinema. O que veem? Filmes, seriados, quais os últimos filmes que viram? Quando foram ao cinema pela última vez, assistir a que filme? Quem não vai muito nem lembra qual o último filme que viu, quem vai muito e diz que viu dois…. Com quem vai, pai, amigo, avó? Se vê filme em casa, vê sozinho? Quem escolhe? (isso é importante)… É fundamental hoje, para estabelecer qualquer conversa com o grupo, ter essas informações. Se eu voltasse no tempo, provavelmente faria algo que acho que não fiz, que é esse levantamento. E constataria que havia perfis muito diferentes. No Augusto Laranja, feito esse trabalho, começo a explorar coisas com as informações que recebi. Oscilo entre apresentar coisas e conversar sobre elas, nessa ordem. Nessas turmas, valeu sempre a pena, com resultados legais, exibir filmes dos primórdios e curtas do século 19. Exibindo e conversando. Solto dois, três, paro e converso. Ou, às vezes, solto um e paro, para ver o que eles estão conversando. Conto quando foi produzido, dou informações e pergunto se já tinham visto, o que acharam. Conversas a partir de filmes, exibições – também videoclipes, televisão. E, em paralelo, conversas sobre cinema, que viram conversas sobre o mundo. Uma conversa boa, que às vezes dura duas ou três aulas, é em torno de quem faz o cinema, quem são os profissionais e quais as funções de cada um. Quem eles sabem que faz cinema? Isso permite entrar no mundo do trabalho, das profissões. E dizer, por exemplo, o que tal função exige que o cara tenha estudado, ou que não tenha estudado nada. Mostrar que tipo de formação as funções requerem, as especificidades. Isso vai parar no que eles já estão pensando em fazer, ou no que os pais dizem a eles.
Com esse público, o que você chamou de morfologia da linguagem acaba vindo sem que você tenha programado discutir, por exemplo, os fundamentos da linguagem. Vem naturalmente: “Isso aí que você está dizendo tem a ver com o movimento da câmera”. Ou com a montagem, a organização dos planos, algo como ir dando os nomes àquilo que estão percebendo. Estou contrastando duas experiências diferentes: uma aula de linguagem audiovisual em um curso de graduação e aulas de cinema para uma meninada de 13 anos. Mas tenho feito mais isso do que o que eu fazia lá atrás. Ou seja, recolher elementos de repertório dos alunos.
E quanto esse olhar sobre o repertório te traz de aporte de coisas novas para as quais você não tinha dado atenção?
Isso acontece sempre que exibo filmes de ficção ou documentário em que os personagens são mais ou menos da idade deles. Uma experiência desse semestre que passou: exibi Jonas e o circo sem lona [de Paula Gomes, 2015], filme baiano, de uma jovem diretora, na época não devia ter 30 anos, que acompanha Jonas, um menino que mora na periferia de Salvador, tem uma ligação familiar com o circo e mora com a mãe – não sabemos de pai – e a avó. O tio trabalha com circo. E ele, por essa ligação muito forte, criou no quintal um circo, que ele toca com alguns amigos. No começo do filme eles estão lá, ele, Jonas, e mais uns quatro ou cinco amigos, cuidando do espetáculo que vão apresentar. E aí vem o problema: os outros meninos não têm a mesma paixão que ele por circo, a mãe implica com o tempo que ele dedica a isso, pois prejudica a escola. Aí vamos pra escola e descobrimos que ele é um aluno relapso, não quer saber da escola. Há um conflito com a mãe, que diz: “circo não, só depois de estudar!”. E aparece o tio: “Não vai adiantar você brigar com isso. O moleque é apaixonado. Melhor lidar de outro jeito. Deixa ele ficar comigo aqui”.
O Jonas tem 13 anos, a idade dos alunos. Mas eles viram nele um moleque mais velho. Claro! Tem muito mais experiência de vida do que eles! Nessas circunstâncias, que eu diria que são observações de conteúdo, é incrível como eles ficam ligados no filme. Tem o curta-metragem – Eu não quero voltar sozinho [2010, direção de Daniel Ribeiro] – que deu origem ao longa [Hoje eu quero voltar sozinho, 2014, Daniel Ribeiro], que fiquei até com um pouco de receio de usar com eles, mas resolvi mostrar, pois a escola é liberal e o assunto estava em novela de televisão. Foi a sessão mais silenciosa de todas. E as reações de meninos e meninas foram bem diferentes. As meninas torcendo por um desenlace romântico, feliz, entre os dois meninos. E os garotos incomodados com o que estava acontecendo. Na hora de conversar, de novo as meninas e os meninos se expressando de forma diferente. Mas o que veio ali, a gente não tem a menor condição de dizer, pois é um olhar de 13 anos. Os personagens são um pouco mais velhos, têm 15, 16 anos.
Vendo filmes mais antigos, eles soltam uns comentários que a gente sabe, mas que talvez não nos ocorresse fazer. Algo como, ao ver os filmes do [precursor do cinema] Georges Méliès (1861-1938): “Efeito especial?!? O cara fazia sem computador!”. Um deslumbramento, um olhar ainda virgem para algumas coisas.
Voltando à questão da crítica e fazendo um paralelo entre crítica literária e cinematográfica. Um crítico e pesquisador como o Ismail Xavier, por exemplo, depois de fazer mestrado com o Paulo Emilio, foi fazer doutorado como Antonio Candido, talvez porque a crítica literária estivesse mais estabelecida e seu percurso pudesse servir para balizar a cinematográfica. Como você vê esse diálogo entre os dois campos críticos hoje?
Podemos falar de três momentos diferentes. Um é esse que você mencionou, de constatação da importância disso que você fala para uma geração como a do Ismail. Aí – posso falar por mim – para a minha geração, de 50 e poucos anos, para quem isso é importante. Um livro que uso com muita frequência em cursos os mais diferentes é um livro de crítica de literatura, que é Por que ler os clássicos, do Italo Calvino (Companhia das Letras). Tem outro texto do Calvino que uso em algumas circunstâncias – Autobiografia de um espectador (incluso em O caminho de San Giovanni, Companhia das Letras) – em que ele conta da descoberta do cinema ainda criança, depois adolescente, na cidadezinha da Itália onde morava. Por que ler os clássicos é um livro de ensaios sobre literatura, precedidos de umas catorze propostas que ele faz para definir o que é um clássico – na literatura. Já cansei de usar essas propostas de definição para brincar com o conceito de clássico no cinema. E, falando por mim, o que descobri primeiro de mais relevante para a minha vida foi a literatura. O cinema veio um pouco depois. E se você me colocasse uma faca no pescoço e me mandasse escolher entre esta parte [aponta a estante de livros] e esta parte [aponta a de filmes], eu ia ficar com esta parte [a de livros]. Falo por mim, mas acho que por mais gente da minha geração.
E, no entanto, num terceiro tempo, o que observo hoje é uma atividade completamente desvinculada da outra, um referencial completamente desvinculado do outro. Se formos amanhã a uma cabine de imprensa ver um filme e perguntarmos o que estão lendo e se o que leem e leram é relevante para o que fazem, se sabem nomear um crítico de literatura, alguém que escreveu sobre literatura, que apresentou algo marcante, a gente vai ver que, numa turma que tem menos de 30, 35 anos, essas referências vão dar traço. Tenho essa impressão, desse universo que faz crítica na mídia – e não mais na imprensa. São as pessoas que escrevem em jornais e na internet. Ou que não escrevem, apresentam um vídeo. São os youtubers ou influenciadores digitais.
Pode até haver um youtuber crítico, mas é difícil. Mas quando a gente pensa em estruturalismo, pós-estruturalismo, os vínculos são fortes…
Já que você falou em estruturalismo, vamos para um assunto específico. Tem uma aula que dou aqui ou ali, com mais regularidade na Academia Internacional de Cinema, de história da crítica. Quando você vai ali para a política dos autores, com os então jovens críticos franceses que se organizaram em torno da revista Cahiers du Cinéma, tem o chamado recall de marca. Mas não por causa da atividade deles como críticos, mas pelo fato de alguns deles terem virado diretores. Quando pergunto se sabem quando é que pela primeira vez na história foi proposto o conceito de autor, eles dizem “Nouvelle Vague”. E respondo: “isso tá chegando perto, mas está no lugar errado, Nouvelle Vague tem a ver com realização, não com crítica! Mas, sim, chegou perto, pois alguns desses realizadores foram antes críticos”. Aí você diz que, para muita gente, [François] Truffaut (1932-1984) talvez tenha sido o maior deles, que há uns cinco livros dele em português. Para outros, o maior era o padrinho dele, o André Bazin (1918-1958), também com vários livros em português.
Você começa a avançar e chega lá no estruturalismo do autor, numa ideia de crítica de cinema que pela primeira vez na história deixa de lidar meramente com repertório e intuição – intuição aplicada a repertório – e passa a se escorar em conceitos da filosofia, da semiótica, da psicanálise, da antropologia, há um grande “ohhh, o que você está falando?” Quero supor que muita gente que milita na crítica de cinema não conheça o estruturalismo do autor na crítica de cinema. Estamos falando do final dos anos 60. Talvez consumam alguma crítica de vez em quando que é derivada do que propôs o estruturalismo do autor, alguma leitura mais psicanalítica. Chegam por caminhos enviesados.
O cinema americano e o jazz foram, de certa forma, beneficiados por um diálogo intenso entre realizadores, público e crítica. Como você vê essa relação tríplice no Brasil ao longo do tempo?
Quando você olha para esse fenômeno em países de cultura cinematográfica mais forte, como Estados Unidos, França, isso tem um desenho. No Brasil de hoje, tem outro. Essa outra configuração, no Brasil, não me parece que inclua imprensa, que esse jogo, especialmente no que diz respeito a uma crítica que eleva o seu objeto… “Vou me ocupar do cinema brasileiro no século 21, vou mostrar como é importante que a gente entenda melhor esse cinema. Por exemplo, as representações do país que ele tem feito e as que não tem feito.” Não vejo isso na imprensa.
Mas já houve…
Sem dúvida. Nos anos 60, no cinema novo. Só o fato de o cinema novo ter tido seus adversários na imprensa, não só uma crítica mais favorável, mas a resistência paulista ao cinema novo. O fato de se brigar com o cinema novo queria dizer que ele tinha importância, pois essa crítica tinha então de dizer quais os filmes que preferia. O Ismail [Xavier] me contou uma história, que já tem alguns anos, de uma aluna, orientanda dele na ECA, que estava analisando, a partir do Prêmio Saci, do Estadão, ali por 68, 69, incoerências da crítica de cinema. O que aconteceu, segundo o Ismail me contou, foi que naquele ano, para não votar em Terra em transe (1967), do Glauber Rocha (1939-1981), os caras votaram em A margem (1967), do Ozualdo Candeias (1922-2007). Então, para não aderir a algo que não achavam legal, foram para algo mais radical, mais distante do cinemão que a turma do [crítico e cineasta] Rubem Biáfora (1922-1996) defendia e fazia como diretores de cinema. Biáfora, Walter Hugo Khouri (1929-2003) e Anselmo Duarte (1920-2009). Foram então para o lado contrário. O cinema novo encontrou uma crítica nos anos 60 que ou o abraçou ou brigou com ele. E, ao brigar, o colocou no centro das atenções e reconheceu que havia ali algo de notável. Hoje, não vejo isso. A gente pode dizer que a própria produção não possibilita. Estou supondo e, ao mesmo tempo dando uma resposta. O grosso da produção de ficção não convida a crítica a esse exercício, embora o conjunto desse material também pudesse se tornar referência para um tipo de análise de representação. Isso tem alguma coisa a ver com o país, não?
Em que momento isso se desarticula?
No começo dos anos 90, com o desmantelamento do aparato estatal, no governo Collor. Mas antes as coisas já estavam se esvaziando, nos anos 80. Tem a ver com circunstâncias políticas, da economia do próprio cinema – ao longo dos anos 80 houve uma redução drástica do circuito, desaparecimento de um certo tipo de sala, consequentemente dos filmes que, se fossem lançados naquelas salas poderiam atender a certo tipo de público (salas de bairro, de médias e pequenas cidades que foram desaparecendo).
Mas houve uma boa vontade da crítica em relação ao cinema dos primeiros anos da retomada. Ao mesmo tempo, uma mudança dos modos de produção, mais voltada ao mercado.
Acho que sim, mas só para eu não esquecer: ficção, talvez não. Mas documentário, sim. E curta-metragem, de ficção e documental, sim. O problema é que essa produção está alijada da pauta. Há uma vibrante produção de documentários, e uma conversa crítica com parte dessa produção que está fora da imprensa, da mídia. Está em outros ambientes, ou acadêmicos ou em certo tipo de espaço na internet que está mais para o acadêmico do que para o jornalístico.
Pelo fato de não ter os mesmos compromissos com o leitor (tempo, linguagem, espaço etc.), o quanto isso tem a ver com não procurar um ponto de convergência com ele?
Vou falar de uma impressão, que é apenas isso. Vamos pegar, por exemplo, o Ismail produzindo os livros sobre o Glauber, sobre o cinema novo, ou os ensaios sobre temas variados, como Nelson Rodrigues no cinema. Os textos transparecem um desejo de interlocução. Ele está se propondo a dialogar com um certo leitor. No caso dele, diria que esse leitor, por mais paradoxal que pareça, é relativamente amplo. O modo dele de escrever, sustentar conceitos, análises, permite que gente interessada por cinema, literatura, cultura brasileira entre no texto. Não sei se quando ele está escrevendo pensa em com quem vai falar. O fato é que o texto apresenta possibilidades de interlocução relativamente amplas. Eu disse paradoxalmente porque talvez pensem que isso verticaliza de tal maneira uma reflexão que para chegar aí só se… Só nada! Abre e começa a ler!
Outro exemplo: o Glauber como crítico. Pega o Estética da fome, muito ouvido e pouco lido. Lê para ver qual o problema que tem. Não tem problema nenhum! É claríssimo! Tem lógica e argumentação. E talvez esse esforço de lógica e argumentação crie uma possibilidade de interlocução relativamente ampla.
Em contrapartida, como você vê a crítica predominante na internet?
Aí é uma impressão, só uma impressão: quando me deparo com alguns textos, escritos com a liberdade que a internet dá em termos de espaço, de pauta, sinto que há sim uma interlocução, só que essa interlocução é com muito pouca gente. Quem escreveu está se propondo a conversar com um grupo muito específico. E o resultado é o que seria de se esperar, acaba conversando com muito pouca gente.
O crítico que escreve para os críticos…
Exato. Conversa com X pessoas, que são os outros críticos, os professores e também circulam nesse terreno. E aí toda a lógica e argumentação constroem nesses textos um objeto capaz de conversar com pouca gente. Mas minha impressão é de que já nascem com esse propósito. A frase de abertura já deixa claro que “se você não sabe disso ou daquilo, porque você veio parar aqui nesse meu texto?”. Coisa que você não enxerga nos textos do Ismail e do Glauber, para citar duas referências nobres. Tem um livro do Glauber que a Ivana Bentes organizou, Cartas ao mundo (Companhia das Letras). É um pouco isso, são ensaios ao mundo. Mesmo com a imensa liberdade que a internet propiciou, a carta, em vez de ao mundo, vira “a carta aos meus amigos do boteco”.
Críticos como Noel Burch (1932- ) e David Bordwell (1947 – ) responderam a novos desafios analíticos em relação a obras que transgrediram a gramática clássica. Como vê a importância deles? Depois daqueles críticos que você mencionou em relação ao início da carreira, quem veio depois em termos de importância para você?
No Brasil, o Ismail, o Jean-Claude Bernardet (1936 – ), o José Carlos Avellar [1936-2016, do Jornal do Brasil], de quem me aproximo a partir do momento em que vou estudar cinema, e depois me aproximo mesmo ao conhecê-los. O Ismail foi da minha banca de mestrado, com o Avellar eu trabalhei, fui aluno do Jean-Claude em várias disciplinas. Dos dois que você mencionou, o David Bordwell. Que, por conta dessa atividade como professor, é referência bibliográfica forte aqui ou lá fora. Há um ou dois anos, organizei um curso sobre estilo no cinema e tem um livro do Bordwell muito legal [Sobre a história do estilo cinematográfico, 2013, Unicamp, tradução Luís Carlos Borges]. Não usei o livro do Bordwell como manual, mas tem umas ideias lá super legais. Em algum momento do curso estava lá: sugestões bibliográficas. Oh, o Bordwell organiza este assunto desse jeito… Explico que não vou fazer a mesma coisa, e sim algo ligeiramente diferente. Algum tempo atrás, estava pensando em referências para estruturar um curso. Duas, três semanas atrás, num curso sobre o [Stanley] Kubrick (1928-1999), puxo um negócio que o Bordwell escreveu a respeito dele, de como alguns filmes do Kubrick – e o que me interessava era Laranja mecânica (1971), mas nem lembro se ele fala especificamente desse filme… peguei as ideias dele e usei em Laranja mecânica como um exemplo do que o Bordwell está chamando ali, também como uma referência americana muito forte, de cinema de arte. Você pode dizer cinema de arte, cinema de autor ou cinema moderno, tudo mais ou menos cabe nesses conceitos todos, que não são exatamente a mesma coisa, mas estão conectados. É uma leitura que ele fez do Kubrick que eu até diria que é amistosa demais com o Kubrick. Dá para você brigar com algumas coisas que ele está dizendo.
Se a gente vai para esse caminho que inclui pesquisadores universitários, aí tem um elenco maior. Mas antes vamos à imprensa, para uma referência interessante. Agora não estou lendo regularmente, mas por muito tempo eu li regularmente depois de ter visto o filme, o sujeito que é o crítico principal do The New York Times, o A. O. Scott. Ele me parece um bom exemplo de como pode ser a crítica de cinema na imprensa sem que ela se rebaixe por questões de espaço, tempo ou interlocução (“oh, temos de falar com todo mundo…”). Ele escreve no principal jornal americano – bem diferente do principal jornal brasileiro, pois está num lugar que tem outros índices de leitura, de formação e um outro tipo de público de cinema. Aliás, isso é um negócio fundamental também, pois a gente fica falando de crítica e de produção, e esquece um negócio fundamental para ter crítica e ter produção, que é ter público. Acho que o Inácio Araújo falou isso, em alguma mesa que fizemos juntos. “Espera aí, gente, não tem público de cinema no Brasil, tem público de televisão. No Brasil, não há espectadores, há telespectadores.” Público de cinema de verdade, mesmo numa cidade como São Paulo, é um negócio bem pequenininho. Nova York é quase Paris. Uma das revistas semanais lá, uma Veja S.Paulo de Nova York, fez uns anos atrás uma capa sobre críticos de cinema. “Por que nós os amamos ou odiamos?” As pessoas leem e conhecem os críticos de cinema, se relacionam com eles. Tem um público para eles também. Aí chegamos no A. O. Scott, principal crítico do NYT. Você vai aos textos dele e reúnem sempre alguns ingredientes bem-vindos: são textos de ideia e, com muita frequência, sobre cinema! Usa o filme como uma alavanca para chegar a alguma ideia que é sobre cinema. Textos com boa lógica e argumentação, bem construídos. No caso dele, tem algo que não considero imprescindível, mas acho interessante: são espirituosos! O cara tem bom humor, o bom humor da frase, que de repente faz você rir ao ler o texto. Eles têm claramente na pauta um desejo de interlocução, que eu diria que é um desejo de interlocução com adultos que gostam não só de ver filmes, mas também de ler textos sobre filmes. É uma interlocução bem aberta. Numa cidade como Nova York, num país como os Estados Unidos – e pelo fato de o jornal hoje ter uma audiência global – ao fazer isso ele está falando com um monte de gente. E se propõe a isso. Ou ele não se propõe, em conversa nenhuma, a falar com pouca gente. Não significa que, de vez em quando, você não dê de cara ali com alguma coisa muito no terreno da vanguarda e que ele não consiga dar uma mastigada naquilo ali e explique do que se trata, exemplificando para o leitor.
Há muitos anos, eu acompanhava os caras da Variety. Ao menos uns três ou quatro faziam ali um trabalho de crítica sensacional, 100% de interlocução sobre a mesa. Quem lê? A indústria, quem faz, quem distribui, quem exibe e os aspirantes a fazer alguma dessas coisas.
Nesse aspecto, a nossa referência – dos blogs e sites especializados – é a crítica especializada francesa, não?
É. Mas é curioso, porque, se você olhar para a imprensa como um todo, até os anos 1950 tem uma orientação da imprensa europeia, principalmente francesa muito forte. Aí tem a adoção do modelo americano. De modo geral, sobretudo nossos jornais diários e o telejornalismo foram orientados pelo modelo americano. Não sei se o Mino Carta continua a bater nessa tecla, mas se você se propõe a fazer uma cobertura como a do New York Times, precisa ter a estrutura que eles têm para tentar cobrir aquele monte de assuntos daquele jeito. Tem de ter equipe, borderô… Se não tiver, é melhor tentar fazer o Libération. Não falar de tantas coisas, mas falar melhor de menos coisas. Embora o movimento da imprensa tenho sido esse, em direção ao jornalismo americano, o movimento da crítica tem a ver com o francês – nem com o europeu.
Para acrescentar um exemplo de publicação ao do A. O. Scott, vou lembrar da Sight and Sound, do British Film Institute. É uma revista inteligente, com boa informação, dá conta do que tem de dar, não rebaixa o leitor, é divertida, tem aquele humor inglês. É inglesa, tudo bem, há problemas em tentar transpor esse modelo para um país como o nosso.
Se você olhar para o cinema dos anos 70, os filmes do mainstream que entravam em cartaz nas grandes salas, aqui em São Paulo, eram Bergman, Fellini, Taxi Driver… uma produção americana, europeia e também brasileira que estava na vitrine. Aí, um monte de fenômenos vão mudando esse cenário a partir dos anos 80, como a opção da indústria por um público mais jovem, o que foi alijando o chamado público adulto; o vídeo doméstico, primeiro com o VHS, depois com o DVD, hoje com o streaming; mais recentemente as múltiplas ofertas de lazer e cultura para alguém que viva numa cidade como São Paulo. Isso afastou não só o público dos longas-metragens de ficção, foi afastando todo mundo.
Estamos perto geograficamente de um exemplo enorme disso aqui, que é a avenida Paulista, o que tinha de oferta e perdeu em termos de cinemas (salas que fecharam no Gemini, no Conjunto Nacional, no Top Cine) e de centros culturais que abriram de lá para cá (Japan House, IMC, Sesc).
Houve uma migração, sim. Quem está interessado numa reflexão mais verticalizada, mais aprofundada, ou simplesmente numa reflexão, migrou para nichos. O público do documentário, que está aí. Há quem produza, quem leia, quem estude. E muitos outros recortes que constituem nichos nestes tempos de século 21. Por exemplo, as interessadas numa leitura de caráter feminista da produção, nas representações da mulher, grupo que tende a repudiar uma produção industrial para ficar com outro universo. A constituição de muitos nichos fez com que muita gente interessada em reflexão migrasse para esses nichos. Assim, o mainstream ficou com menos reflexão.
Pois é, mas muitas vezes essa reflexão acaba sendo meio pré-fabricada, pois você já sabe a qual conclusão vai chegar, o que pode e o que não pode. O Caetano Veloso, numa entrevista à Folha, disse ser simpático a várias dessas causas (feminismo, LGBTs etc.). O problema é que décadas atrás, diz ele, brigávamos para que tudo isso estivesse no espaço comum, e não para que cada grupo tivesse seu espaço reservado. Isso acaba sendo restritivo quando as obras de arte assumem esses pontos de vista. Há pouco tempo, o [escritor] Bernardo Carvalho, numa de suas colunas na Ilustríssima colocava em questão essa constante preocupação atual com o spoiler, como se a única coisa que importasse fosse o desenlace da trama, e não os sentidos que podem estar no interior da narrativa. O quanto isso decorre das séries televisivas? Será que elas não assumiram o papel dos folhetins do século 19?
Sim. Mas faço uma ponderação. Essa produção para telas pequenas é muito diversificada. Dentro desse oceano tem coisas que me parecem muito boas e fogem a esse modelo consagrado. Twin Peaks, do David Lynch, por exemplo, a terceira temporada. Ou Fargo, dos irmãos Coen. Nesses dois casos ocorre justamente o contrário. Se fizermos uma aposta para ver onde vai começar o próximo episódio, nenhum de nós vai ganhar, pois não é o andamento tradicional. Em Twin Peaks e Fargo é como se sempre começássemos o episódio sem saber onde a narrativa está. É como se dissessem pra gente: “eu não sou uma novelinha. Sou outra coisa, algo que lembra muito o que o cinema já foi”. Mas, é claro, o modelo dominante é esse serial, que lá atrás eram os folhetins de jornal, que a televisão passou a fazer e hoje está nas telas pequenas.
Mas queria falar sobre algo que me chama mais atenção em relação ao comportamento desse perfil de espectador que parece entender que o que interessa numa narrativa é a surpresinha e o final que vai levar a outro início. É o comportamento dos espectadores nas salas de cinema. Continuo a ver filmes com público, não vejo só sessão para imprensa. Hoje, aliás, vejo mais sessões com o público. E o que tem me chamado mais atenção em qualquer tipo de sala, e não só no Multiplex em que está passando a superprodução americana de ação, mas também no Itaú, Belas Artes, no Cinesesc: as pessoas se comportam como se estivessem vendo o filme na casa delas. Nesse sentido, acho que nunca chegamos a ter espectadores de cinema depois que a televisão se popularizou no Brasil, nos anos 70. Acho que isso tem a ver com a expectativa por uma determinada estética, por certas estruturas narrativas. Só que agora, além disso, tem uma questão comportamental. A pessoa se comporta como se estivesse na própria casa, na televisão, tablet ou computador. E você ouve o que elas falam. Coisas do tipo: “E agora, o que ele fez?” Alguém que fica falando coisas desse tipo o tempo inteiro não foi educado para a experiência cinematográfica. Fico imaginando como essa pessoa lê. Será que é igual? O estado de introspecção a que o cinema e a literatura nos convidam a entrar, uma operação mental que lida com os sentidos da narrativa, parece que nada disso cabe para esse público, só um encadeamento de ações, todas compreensíveis. Se houver uma elipse na narrativa, é um problema.
Quanto esse tipo de comportamento dialoga com a compreensão literal dos textos, deixando escapar figuras de linguagem simples, como ironia etc.?
Se a gente considerar que no Brasil temos problemas sérios de interpretação de texto, por que deveríamos ter um espectador sofisticado de cinema? De onde ele viria? Se as pessoas leem um post e não entendem que há humor ali… Como você forma público para o cinema? Tem algumas estratégias, usadas em outros países. Mas no nosso caso, é como se o problema fosse anterior. Não é como é que eu formo o público para o cinema, é como eu formo? Como formo o sujeito, o cidadão. E aí não tem conversa: é como eu formo o cidadão para a leitura!
Há muito tempo falo sobre o fato de termos adquirido um estágio técnico alto no audiovisual antes de atingirmos níveis elevados de leitura. E, lendo alguns artigos do Cristovão Tezza recentemente, vi que ele também levanta essa questão. Ou seja, um país que já tinha uma grande tradição de oralidade, depois acentuada pelo rádio e num terceiro momento pela TV, parece ter mais dificuldade de dar o salto na alfabetização.
Houve um curto-circuito aí, acho. Antes que houvesse universalização no ensino básico, antes que os índices de analfabetismo funcional fossem drasticamente reduzidos, antes que isso acontecesse, desgraçadamente – em certo sentido – fundou-se pra valer no país uma tradição, que bebe na oral, que já era forte, que estimula o consumo passivo, o audiovisual. O grande objetivo dela é “sente no sofá e fique tranquilo, eu não vou te dar trabalho”. Em nenhum campo: nem no jogo de futebol, nem no capítulo da telenovela, durante o telejornal.
O papo continua. Mas, como nas melhores séries, ainda temos poucas informações sobre os rumos da conversa! Aguardem!
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