Foto: Matt Briney/Iso Republic
Texto publicado em 18/11/2019
O mal entendido é sistema motor da interação humana. A clareza é a entropia que age na superfície, como o furacão que varre um edifício, mas não altera a fundação.
O pedreiro Gleison Lopes de Oliveira e cúmplices foram presos em Itu (interior de São Paulo), em agosto de 2003, pela morte do dono de cervejarias Nelson Schincariol. A defesa pediu habeas corpus para o réu. No recurso, o advogado solicitou também a anulação de depoimentos de testemunhas, que considerou irregulares.
Um desembargador da capital recusou a liberdade provisória, mas aceitou anular os depoimentos. No entanto, ele comunicou a decisão à Justiça de Itu num telegrama confuso, com uma frase de 17 linhas e 135 palavras. O trecho “negada a pretensão” estava a infindável distância de “habeas corpus”, que estava longe demais da conclusão “aceitando liberdade provisória ao réu”. A Justiça local entendeu que os pedidos da defesa haviam sido aceitos e soltou Oliveira em abril de 2004. Ele só foi recapturado em 2011 para a pena de 23 anos de cadeia.
Uma afirmação nos lança uma sombra interpretativa difícil de dissolver sem explicação adicional. O telegrama seria esclarecido por um mero telefonema entre a Justiça da capital e a do interior. Mas a blindagem à hierarquia judiciária intimidou gesto tão trivial. Nossos jogos de linguagem e práticas cotidianas estão enredados. O erro de superfície esconde a distorção de fundo, a falta de sinergia da Justiça.
Textos só parecem objetivos – na ciência, no direito, no jornalismo, no mercado – porque lidos segundo as regras desses ambientes. Isaac Newton: “Matéria atrai matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias.”
A lei newtoniana não deixa dúvida razoável não porque redigida de forma clara, mas porque lida de forma colaborativa ao contexto da ciência. A mesma lei poderia se tornar obscura se questionássemos a que massas e distâncias ela se refere. A máxima de Newton só é clara porque lida do seguinte modo:
“Matéria atrai matéria na razão direta das massas (das matérias em questão) e na razão inversa do quadrado das distâncias (das matérias cuja relação é medida por cálculo ou experimento da física.)”
Outros usos de “massa” (massa de pizza, de cimento, corporal etc.) são descartados pelo leitor, exceto o do jogo de linguagem da física. Numa interlocução, não há observadores isentos e equidistantes dos fatos. Há intérpretes que aceitam o mesmo jogo. A clareza supõe um intérprete cooperativo. Diferentemente de quem só observa, o intérprete é um agente em jogo. Ele é obrigado a adotar uma conduta em relação aos outros, a operacionalizar estratégias, a prever desvios e movimentos. Ele participa. O intérprete nada entenderia do que diz o interlocutor se não estivesse dentro do processo desde o início. A condição estabelecida pelo jogo define o esforço por clareza de lado a lado.
Mas quem dera que a interação fosse o fair play de quem entra em campo disposto a mudar de ideia ao ouvir argumento melhor; em que os envolvidos disputam a partida com a mesma ciência das regras, equilíbrio de forças e mesmas distâncias entre jogadores. Quem dera cada um buscasse só convencer o outro ou aprender algo que não sabia.
As dificuldades para uma interação sem distorções são inúmeras. Algumas são gramaticais: os jogadores devem distinguir-se num mundo já interpretado, de sentidos implícitos estabelecidos antes de nascerem; de compreensões estruturadas; lugares para pessoas manterem relação e vocabulários a priorizar. Cada jogador interioriza essa gramaticonomia para descolar-se da média, enquanto recorre ao acervo de suas experiências e reage às exigências de cada interação.
Instalar a dúvida no interlocutor talvez faça o sistema reiniciar. Mas uma dúvida real só se instala se o intérprete para de acreditar na proposição que considera relevante mas conclui ser contraditória. Se tal não ocorre, nada vale a não ser em referência ao que já se aceitava. E, então, a mensagem recebida não será ponto de partida da resposta.
A incompreensão mútua não é uma compreensão esfumaçada dos pontos em disputa. O entendimento não funciona a menos que os envolvidos no jogo refiram-se a uma só realidade factual, estabilizando o espaço público. Na prática, a possibilidade de uma realidade “factual em todas as mentes” é remota. Interlocução sem distorção é não tanto uma impossibilidade, mas a anomalia.
Fontes: Jürgen Habermas; Richard Rorty. Filosofia, racionalidade, democracia. Org. José Crisóstomo de Souza. São Paulo: Editora Unesp, 2005. / Sírio Possenti. “O contexto limita a clareza”. Língua Portuguesa 65. São Paulo: Segmento, março 2011: 54-55.