Foto: Cam Adams/Iso Republic
Texto originalmente publicado em 16/12/2019
Os jovens brasileiros parecem assustados com o futuro, buscando objetivos palpáveis e tradicionais e sentem uma grande necessidade de interlocução com o mundo adulto, que parece não responder a contento a esse chamado. É essa a impressão que salta aos olhos na leitura da nova versão da pesquisa “Nossa Escola em (Re)Construção”, terceira edição do levantamento realizado pelo portal Porvir em parceria com a Rede Conhecimento Social.
No total, foram ouvidos 258.680 jovens entre os 11 e os 21 anos. A pesquisa não reflete a realidade nacional do ponto de vista da proporção de jovens em cada estado, pois os percentuais da população são desiguais em relação às regiões brasileiras, com grande prevalência de jovens da região Sudeste. O intervalo etário escolhido talvez também seja amplo e heterogêneo em excesso, pois as angústias daqueles com idades nas duas pontas – 11 e 21 anos – são de natureza bem distinta. Mas, de toda forma, possibilita conhecer questões candentes para essa população e fazer recortes mais específicos, como no caso das oito redes estaduais que aderiram ao levantamento buscando informações para a implementação das mudanças relativas à reforma do ensino médio (Alagoas, Acre, Distrito Federal, Mato Grosso, Santa Catarina, São Paulo, Roraima e Tocantins).
Algumas respostas talvez precisem de cruzamento de dados mais detalhado para permitir conclusões de maior abrangência, porém, podem colocar em dúvida certos mantras que vêm sendo bastante repetidos. Um deles diz respeito justamente à questão do ensino médio e da continuidade dos estudos e opções de vida. A pesquisa mostra jovens bem mais pragmáticos – e talvez possamos dizer conservadores em termos de sonhos e anseios – do que preocupados com uma formação integral como seres humanos. Preparar para o Enem e para o mercado de trabalho, por exemplo, são opções que eles acham que os fariam aprender mais e ser mais felizes, caso a escola se concentrasse nelas, diz a pesquisa. Aliás, todo o levantamento é feito com perguntas pautadas por esses dois caminhos em relação ao foco da escola: o que os faria aprender mais e ser mais felizes (Veja metodologia).
Para 39% dos jovens ouvidos, a escola os faria aprender mais se tivesse foco no Enem e no vestibular, e isso deixaria 32% deles mais felizes (veja figura abaixo). Caso o foco fosse o mercado de trabalho, 32% julgam que aprenderiam mais e 36% que seriam mais felizes. As respostas, no entanto, podem embutir contradições, pois o foco no preparo para as relações humanas e para lidar com as emoções teria boa resposta de aprendizagem para 8% dos ouvidos, e deixaria 5% deles mais felizes. Se esses números parecem baixos, em outras perguntas da pesquisa, no entanto, é clara a requisição de ajuda para lidar com as emoções. Pode ser uma contradição, ou um desejo de que isso se dê em alguma outra dimensão, escolar ou não. (Veja ao final do texto imagens da pesquisa, gentilmente cedidas pelo Porvir. O acesso ao relatório é livre).
“Essa resposta chamou muito nossa atenção, pois trabalhamos com o conceito de educação integral, e eles disseram querer vestibular. Mas, olhando o todo, há muito essa preocupação com o futuro. Eles veem a escola como um lugar que pode fazer com que o futuro deles seja melhor. Esse é o papel primordial da escola para eles”, analisa Tatiana Klix, diretora do Porvir.
Outra questão também mencionada por ela e que parece plausível é a possibilidade de que a resposta seja motivada pela cobrança social sofrida pelos jovens para que estudem e trabalhem, e que estas são premissas essenciais para que assegurem uma boa condição num mundo que promete hostilidade.
Miriam Abramovay, socióloga e coordenadora da Área de Juventude e Políticas Públicas da Flacso (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais), concorda com o raciocínio, mas com ressalvas. “É justo que eles estejam inseguros em função do momento que vivemos. Mas acho que faltou teorizarem em cima dessa resposta. Faz muita falta nesse tipo de pesquisa um trabalho de caráter qualitativo, lançar um tema para que seja discutido de forma mais ampla”, diz.
Para ela, de maneira geral, a pesquisa confirma outras constatações feitas anteriormente, mas se ressente de maior acuidade metodológica. A principal restrição talvez seja a de não se poder projetar os resultados para o país.
Busca pelo diálogo
Num momento em que depressão e suicídio entre jovens são temas que preocupam em termos mundiais e nacionais – dados da Organização Mundial da Saúde de 2016 apontavam o suicídio como segunda maior causa mortis entre jovens de 15 a 24 anos no Brasil, superada apenas por acidentes no trânsito – chama muita atenção o número de jovens que gostariam de contar com a presença de psicólogos na escola. De cada 10 jovens ouvidos, seis deles pedem a presença de psicólogos, quatro valorizam a presença de médicos ou outros profissionais de saúde, quatro gostariam de um orientador profissional e dois da presença de assistentes sociais.
Além disso, querem que a escola os auxilie nas escolhas que devem fazer, como aquelas relativas à carreira ou a questões comportamentais: 27% deles gostariam de conversar sobre esses temas durante as aulas normais; 19% em aulas semanais especiais; 12% em mentorias individuais.
Esse desejo de conversa parece estar sendo pouco atendido para além dos muros da escola, em instâncias sociais que possibilitem trocas entre eles próprios e a população adulta. Quase a metade, 48% deles, disseram não ter vínculo com nenhuma outra instituição; 35 participam de grupos em igrejas e 15% de coletivos juvenis. Há ainda menções a ONGs (6%), movimentos (6%) e partidos políticos (2%).
Tatiana Klix diz que esse pedido de apoio foi o que mais chamou sua atenção em relação aos resultados. “Essa vontade que eles têm de que a escola seja um espaço de diálogo com professores e outros profissionais que os apoiem em seu projeto de vida, na preparação para o futuro num sentido mais amplo do que só da escolha profissional. Pessoas que os ajudem a aprender a lidar com suas emoções, a se relacionar, a decidir que caminhos escolher: se vão pra faculdade, se vão trabalhar, se vão se preparar para o mercado de trabalho. Sentem necessidade de a escola extrapolar os conteúdos acadêmicos, de apoiá-los nessas decisões difíceis. Não que não queiram as questões acadêmicas, mas querem uma ajuda nos seus projetos de vida”, avalia a diretora do Porvir.
Com a experiência de ter realizado pesquisas voltadas à questão da convivência escolar, Miriam Abramovay vê o tema dessa dimensão dialógica como mais complexo do que a presença de um profissional específico na escola, ou mesmo fora dela. Em sua visão, querer o psicólogo reflete também a absorção de discursos sociais, inclusive intraescolares.
Para se ter uma dimensão acerca da força dessa ideia, a pesquisa “Conselho de Classe“, realizada pela Fundação Lemann e Instituto Paulo Montenegro em 2015 em âmbito nacional, apontava como o fator mais urgente a ser enfrentado a falta de acompanhamento psicológico de que os alunos necessitariam. O levantamento ouviu apenas professores, em etapas qualitativa e quantitativa, mas não apontava o número total. Desses, porém, 22% diziam que esta era a maior urgência a ser resolvida, enquanto 31% a colocavam entre as três principais. E logo após vinha um tema relacionado, a indisciplina dos alunos, principal questão para 15% dos professores e entre as três mais importantes para 32%.
Mas a questão, como pondera Abramovay, não seria o que a escola pode fazer sobre isso enquanto resposta pedagógica, com a construção conjunta de espaços e mecanismos de diálogo e convivência, ao invés da crença de que uma especialidade, ainda que bem-vinda, possa dar conta do todo?
“É evidente que seria ótimo ter psicólogo na escola. Mas não que isso resolva todos os problemas e atritos, pois a questão é muito mais complexa. É preciso ter um programa de convivência escolar, em que o psicólogo pode até ser uma parte importante. É mais ou menos o que propusemos em nosso trabalho junto ao MEC e depois com o BID, e estamos lutando ainda para colocar em prática”, relembra a socióloga.
Segundo ela, um dos grandes pontos aferidos em seus levantamentos era o da participação dos jovens na escola, pois eles diziam não ter voz. “Esse foi o grande pano de fundo: como conseguir que esses meninos e meninas se sentissem mais acolhidos na escola, mais participativos, para poderem pensar, dizer e refletir sobre temas importantes”, conclui.
Convergência
Em um ponto, há uma significativa convergência entre as pesquisas anteriores de Miriam Abramovay e o levantamento do Porvir. Numa das produções mais interessantes que conduziu, “Juventudes na Escola: sentidos e buscas. Por que frequentam?” (2015), Miriam realizou pesquisas quantitativas e qualitativas. Foram 80 grupos focais em oito cidades brasileiras, para uma análise do que faz os jovens ficarem ou se evadirem da escola. No caso, jovens de 15 a 29 anos, pois havia estudantes da Educação de Jovens e Adultos e do ProJovem Urbano.
“A questão dos professores coincide com essa pesquisa de agora. Na nossa pesquisa, a pergunta do MEC era ‘Por que muitos jovens saem da escola e por que muitos permanecem?’, O que faz com que saiam ou que permaneçam? E eles diziam que se a escola tivesse um professor que os ensinasse, ainda que fosse apenas um bom professor, não precisariam ser muitos, e que também tivesse boa relação com eles, de abertura, eles não iam embora da escola.” Ou seja, muitas vezes basta um único professor que ensine e dialogue.
A pesquisa atual mostra que a metade dos alunos classifica como regular ou ruim o relacionamento entre professores e alunos, e 60% dizem que seus colegas não respeitam ou valorizam os docentes. Ao mesmo tempo, 70% dizem conversar com os professores sobre assuntos extracurriculares e 60% dizem que os professores, em gênero, são bons. Aparentemente contraditório? À primeira vista, os alunos parecem atribuir o mau relacionamento aos colegas (a formulação da pergunta permite a inferência) e, sobretudo, o clima escolar não parece adequado. Afinal, se os professores têm abertura para conversar, são bons – para a maioria – por que o relacionamento seria regular ou ruim?
E há um problema grave de absenteísmo docente: 5 de cada 10 alunos dizem sofrer com a falta de professores. “Como os respondentes são os jovens que estão na escola (99%), eles entendem que os processos de socialização têm de acontecer lá dentro. E aí os professores são pessoas de referência para eles, é o lugar onde estão na maior parte do tempo, têm altas expectativas em relação à escola”, diz Tatiana Klix.
Abrir a escuta para o que os jovens têm a dizer é um passo indispensável não só para que eles permaneçam na escola. Mas também para que permaneçam vivos.