Foto: Maria Luiza Cunha Lima, especial para o Trem das Letras
Texto publicado em 08/05/2020
“Nesses meses desde o início da pandemia, a minha sensação é de que as pessoas com quem eu convivi aqui em Seul não tinham medo de pegar o Covid, tinham medo de transmitir o Covid a outras pessoas. Pensavam ‘e se eu for responsável por passar a doença para alguém, pela morte de alguém? Não posso pegar isso e descobrir que alguém morreu por minha causa.”
O comportamento descrito acima é uma síntese de um dos aspectos que mais chamaram a atenção da pernambucana Maria Luiza Cunha Lima em sua estadia na Hankuk University of Foreign Studies, em Seul, capital da Coreia do Sul, onde está lecionando há quase três anos. A consciência coletiva e o respeito a alguns valores comuns do povo, como a educação, marcam as relações entre os cerca de 52 milhões de habitantes, dos quais 11 milhões vivem na capital e outros 9 milhões em sua região metropolitana.
Graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco e doutora em Linguística pela Unicamp, onde foi coorientada por uma das grandes referências nos estudos de língua portuguesa, a professora Ingedore Koch, Maria Luiza decidiu ir embora do Brasil por estar desanimada com o país.
Na época, o Brasil vivia as intensas crises política e econômica da traumática passagem do governo Dilma Rousseff (PT) para Michel Temer (MDB), via impeachment. Apesar de satisfeita com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde deu aulas por 12 anos, pessoalmente, a professora também não estava muito feliz, então achou que era o momento de conhecer uma cultura diferente. Bem diferente. Já tendo vivido experiências em Portugal e nos Estados Unidos, onde teve temporadas como professora visitante em Boston e na Carolina do Sul, ficou sabendo de uma vaga num lugar que mexeu com sua bússola interna.
“Eu queria aventura, gosto de andar, tenho um espírito errante”, diz ela, alongando o /r/ forte e levando a língua aos dentes para pronunciar a sílaba final de “errante”, com um sotaque que não deixa dúvida sobre sua origem pernambucana, fazendo lembrar o intérprete e compositor Lenine. E termina a lembrança: “Ah, Seul é muito interessante, eu nunca fui, deve ser muito legal”. Além disso, a oportunidade lhe pareceu muito boa em termos profissionais (a universidade tem grande prestígio local e internacional), financeiros e de condições de trabalho. Foi aprovada no concurso e decidiu partir, mesmo sem conhecer ninguém no novo país de moradia.
Volta às aulas: já on-line
Em março deste ano, quando começaram as aulas na universidade, os 18 professores (16 coreanos, uma portuguesa e Maria Luiza) e 300 alunos do Departamento de Língua Portuguesa da Hankuk já não puderam voltar às atividades presenciais.
No início do mês anterior, quando os casos de Covid-19 ainda não chegavam a 30 na Coreia e tudo parecia sob controle, uma senhora de 61 anos apareceu com os sintomas e se recusou a fazer testes. Religiosa, adepta da seita evangélica Igreja de Jesus Schincheonji, foi para a cidade de Daegu, perto de Seul. O pequeno templo, num local apertado, reunia mil pessoas a cada um dos quatro cultos semanais. Ela compareceu aos quatro. Em 1º de março, o número de infectados do país havia pulado para 3.526, sendo que a senhora foi a paciente de número 31.
“Essa igreja é responsável por mais ou menos 60% dos casos coreanos. Foi aí que degringolou, tiveram de fechar a cidade de Daegu. Começaram a tomar cuidado, isolaram grandes áreas da cidade. Só não fizeram melhor porque os membros da igreja esconderam que faziam parte dela. Mesmo estando com corona, não iam fazer o teste. Os coreanos ficaram com muita raiva deles”, relembra Maria Luiza.
Com uma série de controles estabelecidos, circulação restrita e monitoramento dos portadores da doença e daqueles que apresentavam sintomas, logo se decidiu que as aulas de escolas e universidades seriam on-line. Só não estava estabelecido até quando o esquema duraria. Para a professora brasileira, seria uma experiência absolutamente nova.
“Caí de paraquedas, foi muito estressante, difícil para dar boas aulas. Trocamos muita informação entre os professores, pesquisei demais na internet e, no final, consegui montar um esquema. Faço o seguinte: tem o app Zoom, de conferências, coloco todo mundo na tela, compartilho tela com Power point, passo os arquivos na tela, escrevo algumas coisas, converso com eles”, conta a docente.
Ela utiliza também o recurso que permite dividir a sala em grupos. “Consigo visitar cada grupo. Depois volto para a sala maior. Faço uns pequenos vídeos de animação com pontos de gramática e passo quizz no Google Classroom”, continua. O final da aula é mais dedicado à prática oral, com os alunos conversando entre si, sem conceitos gramaticais, já passados nos vídeos. Os testes são feitos depois por eles. Segundo Maria Luiza, a aceitação tem sido boa. “Os meninos têm gostado, me mandam mensagens dizendo que estão aprendendo e que está divertido”, diz, sem esconder certo alívio por ter vencido o desafio.
Na última terça-feira, dia 5 de maio, quando conversou com o repórter, a professora disse que havia feito uma consulta aos alunos, para saber se eles queriam terminar o semestre presencialmente ou on-line. Isso porque houve liberação por parte das autoridades para que classes com menos de 20 alunos e grande espaço físico, para que haja distância entre eles, voltem às aulas a partir do dia 11. Isso se o contágio local continuar zerado, o que já ocorria há dez dias no início do mês.
Maria Luiza dá aula para seis turmas, duas pequenas, com oito alunos, na pós-graduação, em que leciona língua, cultura e cognição. E outras quatro na graduação, em que dá aulas de português para estrangeiros. Essas quatro preferiram terminar o semestre on-line. Para muitos alunos, por conveniência, pois assim não terão de ter despesas com moradia, pois muitos deles não são de Seul. Mas há também aqueles que estão com medo da Covid. Assim, melhor esperar mais um pouco.
Horizontes em língua portuguesa
O ingresso nos cursos da Universidade de Hankuk é bastante concorrido e a instituição bem pontuada nos rankings locais e reconhecida internacionalmente. Os dois maiores atrativos para os alunos procurarem por cursos superiores de língua portuguesa são a possibilidade de conseguir trabalho no Brasil ou em Portugal, nas filiais de grandes empresas coreanas, como Samsung, Hyundai, LG e Kia, e a diplomacia, pois Hankuk forma a maioria dos futuros diplomatas coreanos. Muitos dos estudantes pensam em voltar-se aos países latino-americanos, então, dedicam-se aos estudos de português e espanhol. Para o ingresso na carreira, devem fazer ainda uma concorrida prova de ingresso após o término da universidade. Durante o curso eles costumam fazer intercâmbio no Brasil ou em Portugal.
Como nos outros países do leste asiático, também na Coreia do Sul a valorização da formação educacional configura hoje um bem nacional. Às vezes exagerado, é verdade, em função do nível excessivo de competitividade que há entre os estudantes para assegurarem um lugar nas universidades.
Maria Luiza conta que uma das coisas mais comuns em Seul, praticamente uma marca cultural da cidade, é entrar num dos cafés e encontrar jovens debruçados nos livros, estudando.
“A pressão aqui para o ingresso é anormal. Quando estão no 2º grau, eles estudam 14 horas, 16 horas por dia, é até cruel. Aqui, a educação é considerada a coisa mais importante na vida da pessoa. Demorei para entender o estresse que esses meninos têm com uma prova. Eles se autopressionam muito”, conta.
A importância da prova de ingresso, correspondente ao Enem brasileiro, é tão grande que no dia de sua realização os aviões não voam durante o exame e os transportes coletivos são reservados aos estudantes até o seu início, para evitar atrasos.
A pressão continua durante o curso superior. No caso das aulas de língua portuguesa, em que as classes são de até 20 alunos, há um limite preestabelecido de notas A para a turma. São no máximo quatro, além de outros quatro B. O resto é C (ou menos). Isso faz com que o professor tenha de criar critérios adicionais para “desempatar disputas” entre os alunos. E deixar estudantes que mereciam um A, com B, por exemplo, por que faltaram a uma aula. “Eu adoro aqui, adoro os alunos, adoro tudo. Mas essa parte é sofrida demais. Todo semestre eu adoeço na hora de dar essas notas”, diz Maria Luiza.
Interação não é a mesma
Mesmo com o sucesso obtido durante a pandemia com as aulas on-line, a professora pernambucana não pretende substituir seus cursos, nem parcialmente, pela nova modalidade a partir do próximo semestre. Para ela, a grande diferença entre os dois formatos é a dinâmica entre os alunos na hora da conversação. As trocas presenciais são mais ricas e variadas, o desembaraço é maior.
Mas o material criado para as aulas do semestre da pandemia não ficará esquecido. “Preparei muito material, e isso tem me consumido demais. Fiquei satisfeita com o resultado, a aula funciona. Posso passar para eles como atividade extra daqui para a frente, mas não dá para substituir o presencial”, conclui.
Em termos de retornos a coisas passadas, no entanto, o que lhe dói mais é pensar o Brasil neste momento. Ela tem acompanhado os colegas professores por meio do Grupo Academia Pandêmica, no Facebook. A sensação é de que estão todos angustiados, sem ter para onde correr.
“Quais opções eles têm? Os alunos não têm tanto acesso à internet, não há informação sobre quanto acesso os alunos têm. Até os professores de níveis iniciantes podem não ter tanto acesso”, diz. Em meio a esse quadro, o desconsolo só é maior quando pensa nos descaminhos das decisões para o combate ao coronavírus. Aí, por sua fala percebemos que, para quem está hoje no Oriente, a percepção é de que o mundo ocidental perdeu o rumo. O Brasil? Bem, o Brasil de agora é o motivo de Maria Luiza Cunha Lima, 48 anos, pós-doutora em linguística, estar vivendo hoje na Coreia do Sul. Sem planos de voltar em breve.