Foto: Carlheinz Hahmann, publicada originalmente em Brazilian Steam Album
Texto publicado em 13/04/2020
A memória é uma mistura de sensações imprecisas, ativadas às vezes apenas por leves fagulhas que nos tocam sem que o percebamos. Esse breve toque pode levar o rumo da mente a deslocar-se no tempo e fazer com que percamos a conexão com o espaço presente. Se toques, cheiros e sabores podem ser a chave de ignição desse deslocamento, a recomposição de sons e imagens parecem ser os elementos definitivos a nos mover de órbita, a compor o cinema do passado de nossas vidas. Mais ou menos esmaecidos ou audíveis, são esses sons e imagens que recriam a narração dos esparsos fragmentos que nos restam na lembrança.
É com essa memória poderosa, que se embrenha nas inconveniências do presente, que Antonio Arnoni Prado compõe o amálgama entre os tempos que separam o narrador de O último trem da Cantareira. O passado recente da homenagem solene de que foi uma quase vítima é a ponte para infância longínqua que vem visitá-lo de repente, misturando-se os companheiros de infância, a seus olhos trajados como andavam então, às famílias que tiraram do armário a roupa de festa para as homenagens universitárias do agora.
Nesses dias de menino, vividos no então distante bairro do Tremembé, na zona Norte de São Paulo, ao pé da Serra da Cantareira, as casas eram simples, as ruas se misturavam com os terrenos, as pessoas se conheciam. E, apesar da rigidez de um ou outro pai, os meninos viviam perambulando dia e noite. De dia, buscavam o drible e os espaços vazios nos jogos de futebol, cujo campo ficava em zona central do bairro; à noite, escapavam da marcação de mães, avós, da parentada toda, em busca das aventuras a que nos arriscamos, quase sempre, em grupos.
Ali, nas ruas, as diferenças que existiam dentro das casas se apagavam, ou ao menos pareciam se apagar. O Tremembé, como tantos outros bairros de São Paulo nos idos dos anos 40, constituía um mundo à parte, muito pouco conectado ao centro da cidade que já tomava ares de metrópole. Congregava remediados e pobres numa proximidade hoje inimaginável.
Nessa época, a transformação da cidade começa a ganhar corpo, e é essa memória, associada ao desenrolar da primeira adolescência, que vai passando pela mente do narrador durante a interminável cerimônia da qual não pode escapar porque será homenageado no fim. Mas, se essa transformação é matéria de muitas obras literárias à medida que uma geração vai envelhecendo e olhando para trás, no caso de Antonio Prado, ele próprio professor de teoria e história da literatura, essa substância da memória é tratada ao mesmo tempo com simplicidade e densidade.
Ao falar do efeito da modernização do transporte, simbolizada pelo fim da passagem do trem da Cantareira, substituído pelos ônibus da antiga CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), o narrador traduz o fim de uma época não só para o bairro, mas para si, para seus colegas, para uma geração e para o então presente de todos eles. A evocação do som é o que produz a imagem para o leitor:
“É que, sem o apito do trem, a Cantareira morria para os nossos sonhos, como morriam as flores e as árvores, os domingos e os dias santos, as madrugadas e os fins de tarde em que a vizinhança conversava lá fora, as cadeiras ao ar livre, enquanto a gente brincava na calçada. Sem o apito do trem, era como se o sol deixasse de brilhar no largo da estação, já coalhado de carros invadindo sem a menor cerimônia a pequena e a grande área, o círculo central e a marca do pênalti, buzinando estrepitosamente bem em cima de onde fora um dia a nossa linha de gol, agora toda manchada de freadas de pneus que sepultavam para sempre a alegria das nossas vitórias nos tantos jogos que ali disputamos.”
E, assim como o espaço da vivência, a narrativa também constrói a dissipação, pelo entendimento presente, das ilusões passadas de camaradagem entre diferentes. Deixa clara a desigualdade das condições de partida de cada um dos amigos que vêm à memória do narrador.
Como na comparação feita com rara felicidade na quarta capa do livro, o tom de retorno à infância e juventude de O último trem da Cantareira evoca a belíssima viagem de Morangos Silvestres (1957), obra-prima de Ingmar Bergman. A lembrança do filme do diretor sueco logo convoca à mente a cena em que o médico aposentado Isak Borg (em atuação magistral de Viktor Sjöström) aparece deitado na relva florida, remexendo em suas memórias de infância. Se a ambiência em que acontecem as memórias do narrador de Antonio Prado não é tão poética, envolto que está no cerimonial impregnado de um garbo cafona, a distância entre a liberdade passada e a obrigação do momento torna-se mais acentuada. Mas, mais do que glorificar o passado, a trajetória que o levou até ali adquire sentido para a compreensão de suas escolhas, fazendo que se desvele um significado que só podemos vislumbrar ao termos em mãos todas as cartas que só o tempo nos concede.
Ficha Técnica
O último trem da Cantareira (2019)
De: Antonio Arnoni Prado
Editora 34, 128 páginas
R$ 43,00
Antonio Arnoni Prado, hoje professor da Unicamp, é autor também de Dois letrados e o Brasil – A obra crítica de Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda (2015) e Itinerário de uma falsa vanguarda – Os dissidentes, a Semana de 22 e o integralismo (2010)