Foto: João Neto/Arquivo MEC
As 63 escolas da rede municipal de Boa Vista, em Roraima, foram escolhidas como locais de validação do instrumento de avaliação Melqo (Measuring Early Learning Quality and Outcomes, ou “Medindo a Qualidade da Aprendizagem na Educação Infantil”, em tradução livre para o português), voltado a estudantes da pré-escola (4 e 5 anos). As escolas do município têm perfis diversificados, havendo urbanas, rurais e indígenas.
No primeiro semestre de 2018, o documento foi traduzido, validado e adaptado aos princípios da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Depois disso, foi feita uma experiência piloto nas pré-escolas de Boa Vista, que durante dois meses, em agosto e setembro, receberam pesquisadores para aplicação-teste do instrumento.
O Melqo foi concebido como um instrumento de avaliação para países de média e baixa renda e passível de adaptação às diferentes localidades, sem que seja necessário pagar por sua utilização. A iniciativa de sua criação é da Unesco, em parceria com Banco Mundial e Unicef, entre outros.
No Brasil, a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), instituição cujas atividades se voltam primordialmente à educação infantil, está fazendo a adaptação do material em parceria com o Laboratório de Estudos e Pesquisa em Economia Social, da USP/Ribeirão Preto. Boa Vista foi a rede que deu início à sua aplicação, seguida de Sobral, em 2019. Em 2020, já em escala maior, estará na rede municipal de São Paulo.
Segundo o relatório já disponível da experiência em Boa Vista, alguns dos resultados mostram que a rede ainda deve trabalhar a introdução de aspectos da BNCC em suas práticas e os alunos apresentam desempenhos “ligeiramente maiores que os resultados de crianças de outros países em que o Melqo já foi aplicado”. A aparição dessa conclusão no relatório é de se estranhar, já que há recomendação da Unesco para que não se façam comparações entre países.
O instrumento congrega dois tipos de avaliação, do ambiente (o módulo Mele) e de aprendizagem da criança (Melpo), que analisa quatro aspectos: funções executivas, linguagem, matemática e habilidades socioemocionais (por meio de pesquisa feita com pais ou responsável e professores).
Beatriz Abuchaim, gerente de Conhecimento Aplicado da FMCSV, diz que, em relação à aprendizagem, o objetivo central é ver como as crianças estão saindo da pré-escola. Ao lado disso, é dado um panorama da etapa para ajudar a pensar o que valorizar ou mudar nas práticas. Beatriz frisa que não há objetivo de prescrever o que as crianças devem saber e que os testes são feitos com regra de parada quando a criança erra duas ou três vezes, para que não se sinta pressionada.
A pesquisadora aponta que há uma correlação alta entre as salas mais bem avaliadas em termos de ambiente e práticas e das crianças que se saíram melhor nos testes individuais. “Talvez possamos chegar à conclusão de que o melhor seja trabalhar o ambiente”, diz.
Ela sublinha o fato de que a intenção da Fundação é tornar o instrumento disponível para os municípios que queiram usá-lo, ofertando uma ferramenta testada e de bom nível. “Não defendemos que todos os municípios ou todas as crianças do Brasil sejam avaliadas, mas que isso possa ser visto em estudos localizados. As redes podem usar como quiserem, mas é recomendado que não usem para bonificação de professores, premiação ou punição de escolas”, registra.
A esse respeito, não há evidências categóricas de que esses mecanismos funcionem sem ressalvas mesmo nas etapas posteriores da educação. Na educação infantil, o risco de resultados futuros ruins para as crianças em função de pressões desnecessárias vale menos ainda a pena.
Diferentes infâncias
Um ponto curioso apontado pelo economista Daniel Santos, do Lepes, é o fato de que as crianças de escolas indígenas não conseguiram diminuir o gap de linguagem que tinham em relação a alunos de outras escolas. A diferença de domínio linguístico entre elas continuou praticamente igual.
A constatação leva a uma reflexão importante, não só no caso específico, mas em relação a todos aqueles que tiverem algum tipo de desenvolvimento que possa vir a ser considerado aquém no ensino fundamental em razão de uma diferença do ambiente de origem.
“O que fazer nesses casos? Não podemos defender que, na educação infantil, tenhamos múltiplas infâncias, e depois, no ensino fundamental, essas infâncias tenham de ser iguais”, diz. Ou seja, exigir coisas muito diferentes na passagem de ciclo pode ser um elemento complicador para a criança, e eventualmente levar à evasão.
Fatores de observação
Hoje vendo com bons olhos a avaliação de ambiente, Santos ressalta três frentes de observação do espaço de aprendizagem que fazem a diferença: o estímulo ao protagonismo da criança, a interação entre adulto e crianças e o uso do tempo e dos espaços. E destaca aspectos a serem analisados:
No estímulo ao protagonismo:
– Uso de perguntas abertas nas interações com a criança;
– Dar a ela liberdade em relação a como realizar a atividade;
– Contextualizar a atividade, conectando-a com experiência de vida ou lugar de origem;
– Percepção e atenção do adulto mediador aos momentos que representam saltos de desenvolvimento. Nessas horas, é preciso ter repertório, estar pronto para identificá-los e dar atenção a todos.
Na interação entre adulto e crianças:
– Interações múltiplas e qualidade da atenção às crianças;
– O que é feito para reorientar comportamentos não adequados (agressões, dispersão que atrapalha o grupo etc.);
– O que é feito para melhorar quando uma atividade proposta não gera engajamento;
– Há alternância de momentos em que as atividades são para todos e outros em que são apenas com alguns?
Uso do tempo e espaços
– Há cantinhos variados disponíveis (de leitura, de aprendizagem etc.)?
– Como os diversos tipos de materiais estão dispostos?
– A produção das crianças é valorizada e exposta?
– Há transição bem trabalhada entre as atividades?