Texto publicado em 16/9/2019
Fotos: Divulgação
Em cartaz desde o final de agosto, o longa-metragem Bacurau, de Kleber Mendonça (O som ao redor e Aquarius) e Juliano Dornelles tem concentrado as atenções não só da crítica especializada, mas também de colunistas e críticos episódicos. Não é à toa. Eleito o melhor filme no festival de Cinema de Munique e ganhador do Prêmio do Júri em Cannes, o longa canaliza, entre adesões entusiasmadas e rejeições enfáticas, os mesmos eflúvios da guerra política que o governo Bolsonaro faz questão de alimentar declaração após declaração.
Se de alguma maneira têm razão aqueles que apontam os aspectos de uma alegoria excessivamente simplista na delimitação das representações do bem e do mal, por outro lado as críticas também têm carecido de uma análise que identifique melhor os diálogos que a obra estabelece com o cinema brasileiro. E não só.
É verdade que muitos já falaram das raízes de western que Bacurau aporta. Isso fica evidente logo no começo do filme, quando os planos abertos e o campo vazio evocam não só clássicos de John Ford, como as homenagens a ele já feitas pelo próprio cinema brasileiro. Afinal, Deus e o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), ambos de Glauber Rocha, já traziam o ambiente do faroeste para o sertão brasileiro. E, aliás, é com este segundo que o filme de Mendonça e Dornelles mais parece dialogar.
Antes de qualquer coisa, quando se aponta um esquematismo em Bacurau talvez seja preciso lembrar que, à semelhança do próprio cinema americano, esta é uma estratégia para estabelecer uma relação de identificação mais direta com o público. Os próprios westerns são exemplos disso, sem falar em opções mais radicais, como os filmes de Frank Capra.
E aqui, o quadro já parece claro ao espectador antes mesmo de ver o filme: trata-se de uma guerra do bem contra o mal, da gente simples contra os exploradores, da direita contra a esquerda, ou seja lá como se queira batizar o embate. O filme se assume como tal.
Outra questão que a propaganda e os comentários prévios alardeiam é a violência. Mas, para quem assiste aos filmes da TV aberta ou 98% dos filmes de ação americanos, Bacurau não só dosa muito bem esse aspecto como tem na construção da expectativa de violência um de seus maiores méritos. O filme, como em vários bons westerns, é todo ele dedicado ao momento da catarse. É como se estivéssemos sentindo os movimentos da natureza antes do confronto final.
Spoiler
Se você, leitor, é daqueles que se preocupam em não conhecer o enredo antes de assistir ao filme, talvez não deva continuar a ler essa interpretação do filme. Aliás, ressalte-se, o que segue é uma leitura possível do filme. Apenas.
Bacurau tem início com uma Via Láctea estreladíssima e a voz de Gal Costa há 50 anos cantando Objeto não identificado, de Caetano Veloso. A imagem nos remete a um mundo distante deste urbanizado em que hoje vivem mais de 80% dos brasileiros.
Os espaços são amplos, e há um cheiro de abandono no ar. O caminhão que virá entregar água para suprir o abastecimento que não tem sido feito em Bacurau passa por um carregamento de caixões e alguns corpos na estrada. É o começo da tal construção da violência.
Quando a câmera aterrissa em Bacurau, um povoado relegado às traças por um prefeito corrupto, vemos o velório de uma senhora, a mãe do professor local. O caminhão trouxe sua filha, neta da senhora, de volta. Na medida em que fica clara a iminência de um confronto, também voltarão alguns moradores que saíram execrados do lugar.
É nesse aspecto que o filme começa a se conectar mais fortemente com O dragão da maldade, por presenças e ausências. No filme de Glauber, são retomadas questões anteriores: Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros, volta ao sertão; assim como Coirana, que quer “reencarnar o mito” de Lampião, como lembra Ismail Xavier em sua detalhada leitura do filme (“O dragão da maldade contra o santo guerreiro – Mito e simulacro na crise do messianismo”. In: Alegorias do subdesenvolvimento. Cosac Naify, 2012)
Mas, em Bacurau, o inimigo não é mais o dono de terras, o capitalista local. É um conluio internacional representado por americanos que buscam jogar um videogame que lhes proporcione o máximo da “experiência” (a palavra mágica das vendas “sensoriais” de hoje em dia): matar os habitantes locais no povoado que foi abduzido do mapa para que possam deleitar-se à vontade.
Em O dragão da maldade, eram três os personagens que giravam em torno da imagem de São Jorge/Lampião: o professor (que reacendia a memória do mito por meio do ensino), Coirana e Antônio das Mortes.
Em Bacurau, o professor é um homem negro, sábio local, um misto de padre e docente, que aceita e aconselha. Lunga, sucessor de Lampião/Corisco/Coirana, é um matador, um dos renegados que voltam para casa. Sua figura é andrógena, o que não diminui a raiva estampada. Ao contrário, faz simbolizar as sexualidades que têm sido objeto de agressões por parte dos religiosos que agora não apenas estão do lado do poder, mas são sua encarnação.
Aqui, se o mito é retomado a partir do lugar do embate, o sertão do cangaço, distancia-se do original em relação ao lugar ocupado pela religião. No Dragão, há o messianismo revolucionário apontado por Ismail. Agora, a religião é transformada em liberdade de crença, assim como de costumes. Não é ela que conduzirá a nada, a não ser do ponto de vista de outros messiânicos, aqueles que cultuam a restauração.
Mas o ponto central, que leva Bacurau a perder a ambiguidade que enriquece O dragão da maldade, é a ausência de um personagem com as contradições de Antônio das Mortes. A não ser que se queira fazer a leitura de que Teresa, filha do professor, pelo fato de ser outra que havia abandonado o povoado, é a nova versão do personagem, feminina e ligada à vida, mas ainda assim sem a riqueza dramática do original. Pessoalmente, não me arriscaria a fazer essa leitura.
Antônio significava ali a possibilidade de conversão do matador de cangaceiros em aliado do povo. Uma possibilidade mediada por suas glórias e culpas, pela solidão do personagem que, como todo herói de western, é fadado à solidão e não à consagração pública.
O desenlace de Bacurau, no entanto, não aposta em heróis, ambíguos ou não. O que talvez equivalha a não acreditar em líderes, numa espécie de utopia anárquica. Ao contrário das alegorias glauberianas, que deixavam um caminho aberto para o fim da teleologia (a chegada da revolução), Bacurau nos remete ao passado. Com o desenrolar da história, parece que estamos prontos a reaver o céu estrelado e a voz de Gal Costa.
PS – Em tempo: Sônia Braga, médica local que tem por hábito beber em excesso, dá um show logo no início, na cena em que desenca a população local.
Ficha Técnica
Bacurau, Brasil/França, 2018, 131 minutos.
Direção: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Com Bárbara Colen, Thomás Aquino, Sônia Braga, Udo Kier e Silvero Pereira.
Lançamento em circuito no Brasil: 29 de agosto de 2019.