Foto: Divulgação/Companhia das Letras
Difícil acertar a idade do historiador Boris Fausto caso não se tenha referência anterior sobre ele. Aos 88 anos, permanece não só lúcido, como muito produtivo e com aparência de bem menos idade do que tem. O segredo provável disso é a realização com o que faz. Afinal, o autor do clássico A revolução de 1930 publicou mais de duas dezenas de livros, seja como autor único ou em colaboração, dois deles nos últimos cinco anos.
Do ofício de historiador, a que chegou tarde, depois de fazer carreira jurídica, migrou nos últimos anos, segundo sua própria definição, para o de escritor, sem complementos. É, ao que parece, uma posição advinda da constatação de, a essa altura da vida, não ter de se ater a temas de especialidade, pois sua visão do todo lhe permite ir um pouco além. Não que Boris Fausto enverede por mundos que lhe são alheios, mas consegue discorrer sobre vários temas com olhar amplo, ancorado também em suas vivências.
De uma forma ou de outra, essas vivências têm gerado manancial para seu exercício de escritor não ficcional, como faz questão de frisar. No penúltimo livro, O brilho do bronze, um diário em que compartilhou a difícil digestão da morte da mulher, a educadora Cynira Stocco Fausto, mergulhou em sentimentos e impressões, na sua própria intimidade. Já em O crime da Galeria de Cristal e os dois crimes da mala, São Paulo – 1908-1928, recorreu ao interesse que ficou adormecido por muitos anos enquanto realizava um trabalho de pesquisa. Ao buscar o material para Crime e cotidiano: A criminalidade em São Paulo (1880-1924), tomou contato pela primeira vez com as histórias que relata no livro lançado no primeiro semestre deste ano.
E, além dos crimes, traz pinceladas sobre a sociedade paulista e paulistana, sobre a imprensa, a justiça, o machismo e a geografia local. Sem, como diz, querer projetar a partir dos pequenos universos retratados uma visão ampla demais sobre a época e seus personagens. Mas, também parece claro, evidenciando as marcas de várias forças sociais então presentes.
Poderíamos dizer que O brilho do bronze – um diário – foi um livro cuja escritura funcionou como uma reelaboração do seu olhar sobre a vida?
Certamente. Comecei a escrever O brilho do bronze (2014) para ocupar o meu tempo. Eu não conseguia ocupar o tempo para fazer, digamos, um trabalho normal, de história ou qualquer coisa, e disse “bom, vou escrever sobre meus sentimentos, afetos, coisas que estão acontecendo, para não ser algo muito carregado”. Mostrei para a minha analista o que eu vinha fazendo e ela achou que estava muito bom, que eu deveria continuar.
Falei com minha editora, a Marta Garcia, que tinha feito a edição de todos os meus livros na Companhia das Letras e tinha mudado para a Cosac Naify. Ela estava procurando coisas novas para indicar na editora, e eu pedi para ela dar uma espiada e ver o que achava. Ela achou que deveríamos publicar, valeria a pena.
Eu ainda estava no começo. A única coisa que ela falou foi para eu mudar um pouco [o tipo de interlocução da escrita]. “Você sabe que tem um olho aí” [em relação à perspectiva de publicação]. Eu me animei com o que as duas disseram. Acabei não mudando muito, mas mudei. Isso me fez pensar muito sobre o luto. E o luto faz parte da vida, o que também me fez pensar sobre a vida. Em certo sentido, é terapêutico.
Na categoria das memórias, antes o senhor havia escrito Negócios e ócios (1997) e Memórias de um historiador de domingo (2010). Para um historiador, essa tensão entre memória e história é sempre algo relevante. Como foi o início dessa memorialística?
O disparador foi muito o meu filho menor, o Carlos [Fausto], que é antropólogo. Ele me disse: “você tem histórias para contar. Da família, a tua história, de São Paulo. Por que você não põe tudo isso numa tentativa de um livro de memórias?”. Fiquei meio em dúvida, mas acabei achando que valeria a pena fazer, e fiz o Negócios e ócios, muito interessado em descrever menos a minha história pessoal e mais a história da minha família. A família da Turquia, a família da Espanha, judeus sefaraditas, de tal modo que eu tinha vontade de ficar só naquilo. Mas percebi que não podia ficar só naquilo, pois há muitos escritos sobre esse tema de um ponto de vista não memorialístico, e eu ia ficar para trás. Não tinha muito a acrescentar, documentos nem nada, e passei para a outra parte. Achei que aquilo estava encerrado, gostei muito de escrever. Aproximou a relação com a família… eu tinha um primo muito sensível, que me disse que [se eu não tivesse escrito] ia ficar tudo perdido, que foi muito importante eu ter colocado aquilo no papel.
Depois disso, algumas pessoas começaram a martelar: “continua, continua”. Levei uns cinco anos até retomar. Pensava: “não, tem a faculdade de direito, não estou com vontade de escrever sobre aquilo”. Acabei escrevendo e fui até onde deu.
Como o senhor classificaria, em termos de gênero textual, O crime da Galeria de Cristal, pois ele traz uma série de convergências entre gêneros?
Você disse tudo, tem uma série de convergências. Eu escrevi um livro, que foi o Crime e cotidiano – a criminalidade em São Paulo, 1880-1924 (Edusp, 2001, 2ª. edição), que foi um grande panorama. E também O crime do restaurante chinês (2009). O que os três livros têm em comum é que são sobre crimes, mas o Crime e cotidiano é bem diferente. Quando escrevi O crime do restaurante chinês me perguntaram se era ficção, romance, o que era, porque ele viaja. Pode-se falar de micro-história? Sim, é assemelhado à micro-história. A rigor, é algo que não é ficção. Sei disso porque tenho tanta resistência a escrever ficção que sei que não estou escrevendo ficção. Tem o uso da imaginação, como quando você pega um fato e vai desdobrando, mas não deixo de dar a conhecer ao leitor que estou lidando com a minha imaginação a partir de um fato. Ou, então, quando em torno do fato há muita imaginação no meio social, é algo de que eu gosto muito. O turco que morreu no crime da mala (uma das três histórias de O crime da Galeria Cristal), os jornais [na época] começaram a dizer que ele não havia morrido, que tinha sido visto embarcando no Pará para o Oriente Médio, não sei mais para onde. Nessas coisas, eu embarquei. É um gênero parecido com a micro-história, sem a pretensão da micro-história, ou de certos livros da micro-história que procuraram tirar demais de pequenos fatos, os chamados fait divers. Evito as grandes generalizações, porque acho que explicam pouco, talvez eu até exagere em evitar as grandes generalizações. Mas pode ser tomado como micro-história, ou como um livro de reportagem histórica, pode-se dizer também, algo que transita em vários mundos. Na realidade, eu comecei historiador e me tornei mais escritor do que historiador em sentido muito estrito.
A história, em determinado momento, não ficou muito presa às ciências sociais e ao método científico, achando que tudo é replicável, quando muitas vezes tratamos de eventos isolados e as generalizações acabam se tornando artificiais?
O tempo não é de conciliação (risos), mas tentando conciliar, eu diria que as duas abordagens são válidas, desde que você tenha cuidado. As grandes generalizações dependem de muitas monografias, de uma massa de trabalhos intelectuais que permita estabelecer as grandes linhas de uma história, a grande estrutura que, de alguma maneira, ainda acho que existe, na linha do [historiador Fernand] Braudel (1902-1985), a longa duração. Se você não tiver esse domínio, esse é o tipo de coisa que pessoas mais novas não conseguem fazer. Aliás, o próprio Braudel fez isso porque ele era um autor aparentemente de um livro só – ou ao menos um livro famoso (O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II, Edusp, 2016) –, e no fim da vida ele escreveu uma série, sobre o capitalismo nascente, mas era um livro que era ele que tinha de escrever, porque conhecia muito bem o terreno em que ele estava pisando, então podia fazer grandes generalizações.
Outra coisa que acho interessante é que você pode lidar com muitas situações. Há muitas maneiras de pensar sobre uma espécie de feminismo que vai aparecendo no começo do século 20. Se ficar no discurso de fatos, você fica só nisso pra cá e para lá. Agora, se você pega um crime, uma figura como a Albertina [personagem central de O crime da Galeria Cristal], por exemplo, tenho a impressão de que nesse nível você diz muito mais através de uma história. Eu fujo da ficção e gosto muito da narrativa.
De um ponto de partida concreto, real, para a narrativa.
Esse caso eu tinha visto muito anos atrás, quando estava pescando outra coisa, mas me chamou a atenção e ficou na minha cabeça.
Os três casos vêm de outras pesquisas?
Sim, do Crime e Cotidiano. Eu vi aquilo e falei “algum dia se eu tiver de voltar, vou fazer uma coisa discreta, mas centrada num desses crimes”.
O livro, de certa forma, também passa por diversos pontos da história do jornalismo, como os tipos de olhares, o moralismo.
Tem uma nota no livro do O crime da Galeria de Cristal que explica um pouco isso. É o seguinte: quando pensei em escrever O crime da Galeria de Cristal, fui ao arquivo – que tinha mudado de endereço, saindo de uma grande confusão aqui na Vila Leopoldina e indo para o Ipiranga. Virou um arquivo judicial, bem organizado. Fui lá para procurar os autos, que eu já tinha visto, e descobri que eles estavam deslocados. Ora, isso é a mesma coisa que autos perdidos. E olha que eles tiveram boa vontade, procuraram bastante. Aí, pensei: “esquece, sem os autos não vou conseguir fazer nada”. Mas me deu uma coceira de ver como os jornais tinham retratado o crime. Foi quando eu vi os diferentes jornais e que algumas pessoas enveredaram pelo caminho do surgimento do sensacionalismo, uma análise da imprensa, coisas bem interessantes feitas por gente nova. Pensei que com aquilo poderia fazer alguma coisa. Daí, constatei, lendo o Correio Paulistano, que eles haviam feito uma coisa abençoada para mim: eles haviam transcrito pedaços das discussões do júri. E eu não tinha, no Crime do restaurante chinês, que é de 1938, nenhuma cena do júri. Eu tinha os autos do processo, mas eles não reproduzem pedaços de cenas do júri, eles dizem simplesmente “julgamento efetuado nesta data, o réu absolvido por tantos votos contra tantos etc.”. Na medida em que fui por esse caminho [do júri], fiquei meio encantado com os jornais, com o estilo, tudo mais, então resultou nisso. Nesse tem muito mais, os outros têm jornais como fonte, mas muito menos.
Por que essas histórias trágicas, dramáticas, tendentes ao melodrama, com morte no meio, nos atraem tanto?
É uma pergunta meio complicada… Acho que há uma ruptura do cotidiano, num grau em que talvez outras coisas não tenham. Por exemplo, a política, que muitos de nós acompanhamos, é uma coisa de um pequeno grupo interessado no tema. Atualmente, temos muitos sacolejos [com a política], digamos assim. Mas, em geral, as coisas mudam em pequenas doses, sai o ministro tal, entra outro, se transforma um pouco em rotina. Uma rotina de que a gente gosta, mas que não deixa de ser rotina.
O crime, dependendo do crime, é um corte nessa ordem que a gente acha que existe. Ele atrai porque a população tem uma atração pelo mórbido, todos nós temos, até aqueles que dizem “não quero nem ver isso”, como se fosse o pecado máximo. Tudo isso atrai muito. Essa é uma das razões pelas quais um crime atrai bastante. E não precisa ser um assassinato. Vamos pegar um exemplo em que não tem homicídio e, por ora, ainda não tem sangue: o roubo do ouro [Assalto realizado em 25/7/2019 em Cumbica (SP), em que 718 kg de ouro foram levados]. Ele chama a atenção de todos nós. É uma coisa sensacional, pouco usual, e isso concentra a atenção. E, gozado, algumas dessas coisas ficam na memória. Minha impressão é que no passado ficavam muito mais, para a população em geral.
Talvez em função do excesso de pequenos acontecimentos chamativos que haja hoje em dia…
É verdade, há oferta demais.
Assim como O brilho do bronze, seu último livro – talvez até de forma mais direta – traz muitos elementos constituintes da história de São Paulo, até certo ponto pouco aproveitados no cinema e na literatura. Qual sua impressão sobre isso?
Não sei, não pensei nisso. Quem é que realmente usou o ambiente de São Paulo? Parece que tem pouca gente… Tem o João Antônio, que usava muito a cidade, a malandragem, essa coisa toda. Lá atrás houve o Alcântara Machado, com Brás, Bexiga e Barra Funda. Mas acho que realmente tem poucos. Nós não temos uma Baker Street, por exemplo, uma coisa que marcasse. Mas você quer ver algo que atrai as pessoas? É uma construção, o Castelinho da Rua Apa. Andei falando sobre esse último livro em encontros e sempre tem alguém que levanta e pergunta: “o senhor não vai escrever sobre o Castelinho da Rua Apa?”. É algo que está além da memória, pois é antigo o crime que houve lá, mas é algo que tem a ver com a cidade, um castelinho que virou tema do sobrenatural; depois do crime havia fantasmas subindo, descendo, as pessoas falam da rua Apa, da avenida São João. O crime é dos anos 30, é um crime em que não sobra ninguém. Na versão oficial, que prevaleceu, é uma família de mãe e dois filhos. Um dos filhos mata o irmão, mata a mãe e se suicida. Não se sabe bem por quê. Se era briga de partilha, atribuição de bens, mas havia alguns segredos não revelados. O castelinho foi o sonho de um sujeito que resolveu fazer um castelo, tal como ele imaginava.
[O Castelinho fica na rua Apa, esquina com a São João, perto da Praça Marechal Deodoro. Há um livro sobre o episódio, O castelinho da rua Apa, de Leda Kiehl, Editora Equilíbrio, 200 páginas.]