Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Texto publicado em 26/06/2020/ Com acréscimo ao final do texto feito três horas depois, às 21h10
Mais do que uma efetiva mudança de rumos na gestão educacional, a nomeação do economista Carlos Alberto Decotelli para a pasta da educação sinaliza que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) sentiu os golpes dos oponentes, ou seja, viu-se efetivamente ameaçado após as ações da Justiça no inquérito das fake news e, sobretudo, com a prisão de Fabrício Queiroz. Desde então, o presidente baixou o tom, recolheu-se, demitiu Weintraub (não sem lhe conceder um constrangedor vídeo de despedida, seguido de uma fuga por medo de uma visita à Papuda), e vem realizando cada vez mais gestões junto ao baixo clero do Poder Legislativo visando garantir sua permanência. Viu-se, então, que não havia bala na agulha para o propalado “basta, agora não toleraremos mais!”. Os generais do executivo também mudaram o tom, Heleno, o Pequeno (como o rebatizou o jornalista José Roberto de Toledo, de piauí) não sustentou a versão de Bolsonaro e o contradisse no inquérito acerca da fatídica reunião de 22 de abril; Luiz Eduardo Ramos pediu para ir para a reserva e Braga Netto não tem insistido em reavivar o Pró-Brasil.
Daí a pensar que a educação vai começar a andar, há um salto enorme. Decotelli foi escolhido por reunir algumas características que servem para administrar o momento delicado. É um oficial da reserva da Marinha (mais um da armada, porém, ajudando a equilibrar um pouco mais a divisão de poderes), é conciliador, se mostra disposto ao diálogo e vem com um discurso construtivo. Além disso, é negro, o que ajuda o governo a tentar desarmar o discurso de racismo e a inibir críticas, ao menos em um primeiro momento, para que essa pecha não seja colada na oposição.
Decotelli fez parte da equipe de transição de Bolsonaro e depois esteve à frente do FNDE (Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação). Uma semana antes de sair do cargo, havia lançado um edital de R$ 3 bilhões, suspenso pela Controladoria Geral da União por suspeita de fraude. Como o jornalista Elio Gaspari (O Globo/Folha de S.Paulo) nunca se cansa de lembrar, o governo não teve o mínimo interesse em apurar responsabilidades nesse caso, que chegava ao absurdo de prever a compra de 117 computadores por aluno de uma escola de Itabirito (MG).
Não é o caso de dizer que Decotelli seja culpado pela óbvia irregularidade, mas não se pode saber que não seja, dado que não houve empenho em identificar os responsáveis por tamanho erro. É bem verdade que Weintraub não prima muito pela boa aritmética, visto que, logo ao assumir, enalteceu o valor gasto na Avaliação Nacional de Alfabetização, dizendo que tinham sido investidos R$ 500 mil em sua realização.
O erro, depois atribuído a uma planilha do Inep, estava na súbita eliminação de três zeros: os R$ 500 mil eram R$ 500 milhões. O que o ministro nem fez menção de notar é que, fosse mesmo verdade o que disse, cada prova teria custado R$ 0,07, quando seu custo real foi de R$ 71,42. Módica diferença de R$ 71,35 a unidade.
Voltando à vaca fria, já que Weintraub felizmente está na paradisíaca Miami, Decotelli chega com relativa boa vontade dos interlocutores do MEC (não todos), mas já de cara tem uma bomba nas mãos: interagir de forma satisfatória com os estados e com o acéfalo Ministério da Saúde, para produzir algum tipo de orientação sobre volta às aulas, retorno muito desejado por escolas particulares, em razão da atual situação de penúria financeira, e pelo setor produtivo em geral, mas que causa pânico nas famílias e nos educadores em geral. Aliás, é bem possível que tenhamos greve onde houver determinação de breve retorno às escolas, como já se ameaça fazer em São Paulo.
Outra questão urgente que merece gestão do Ministério é a aprovação do Fundo de Desenvolvimento da Educação, o Fundeb, sem o qual grande parte dos municípios não tem condições de tocar o dia a dia em suas redes. O Fundeb vence em 31 de dezembro, e o mais ajuizado é votá-lo antes do recesso de 17 de julho, pois o segundo semestre tende a ser dominado por apenas dois assuntos: pandemia e suas consequências, e eleições municipais.
Afora esses dois temas, restam todos os problemas que já estavam aí antes da pandemia e até mesmo antes de Bolsonaro, que só fez agravá-los: o subfinanciamento da educação básica (pensemos em valor por aluno, não em percentual do PIB), do ensino superior, cuja asfixia à pesquisa tem feito ver os efeitos negativos na gestão da Covid-19; a crítica formação docente em todo o país; a péssima remuneração de professores, fator que afasta os talentos da profissão, provocando carência de especialistas em diversas áreas; a não implementação de políticas públicas (para ao menos sabermos o que funciona e o que não funciona); o combate à agora mais escancarada desigualdade social, para ficarmos em alguns problemas mais gerais.
A educação, assim como a cultura, os direitos humanos, a preservação histórica e o meio ambiente são temas espinhosos para este governo, que teima em classificá-los como bandeiras de esquerdistas, comunistas ou sabe-se lá quantos fantasmas mais lhes sejam úteis explorar para tomar de assalto o país. Em muitas dessas áreas, a tática tem sido a de empurrar com a barriga, não fazer nada para que o tempo passe e as estruturas anteriores se deteriorem, como é o caso do patrimônio público, do qual a Cinemateca Brasileira hoje é o maior exemplo. Aliás, na área da Cultura como um todo, a estratégia foi essa: não fazer nada para desarticular tudo.
Num momento em que a antiagenda de Weintraub começou a significar um entrave ao governo, vemos a convocação de um representante menos histriônico, à primeira vista palatável e disposto ao diálogo. É preciso, no entanto, que haja atenção para que essa gestão não se mostre mais uma campeã de processos protelatórios, em que uma “retórica do bem” seja o signo da inação que tanto interessa aos fãs do Escola sem Partido (e sem ciência, reflexão, inteligência…).
NOTA: logo após a publicação deste texto, o jornalista Maurício Tuffani, do site Direto da Ciência (www.diretodaciencia.com) publicou nota informando que o reitor da Universidade Nacional de Rosário, Argentina, Franco Bartolacci, desmentiu, no Twitter, que o novo ministro se tenha doutorado pela sua instituição. Questionado, o MEC respondeu ao repórter, que Decotelli havia “cumprido todos os créditos”. Ao que parece, os créditos se referem apenas às disciplinas cursadas, mas não à defesa de tese exigida em nível de doutorado (à qual são atribuídos outros tantos créditos). O MEC apresentou um documento da Universidade em que não há menção à tese. Em seu Lattes, ela aparece com título e tudo: “Gestão de risco na modelagem dos preços da soja”, ano de obtenção: 2009. Depois disso, Decotelli ainda fez um pós-doutorado pela Universidade Wuppertal, na Alemanha. Aguarda-se um esclarecimento por parte do novo ministro.