Foto: Agência Senado
Texto publicado em 06/07/2020
Os efeitos da ação combinada entre desgoverno educacional e pandemia do coronavírus ainda não podem ser mensurados com precisão, mas já se pode antever um aspecto bastante problemático: a provável regressão em diversos pontos nos quais havíamos evoluído na educação infantil, sobretudo nas creches.
Creches e pré-escolas particulares que não estejam articuladas com outras etapas educacionais tendem a ser as instituições mais vulneráveis em termos de solidez financeira. Elas trabalham com margens pequenas e, apesar da insistência de alguns, é muito difícil que substituam aulas presenciais por on-line, mantendo algum sentido educativo. De zero a três anos, pelo contrário, esses artifícios não são recomendados.
No caso das redes públicas municipais, responsáveis por essa etapa da educação, há temor generalizado de que a queda na arrecadação leve várias delas a fechar vagas de creches e a tentar se equilibrar para manter as matrículas na pré-escola, visto que a oferta para crianças de 4-5 anos é constitucionalmente obrigatória. O mesmo risco existe com relação às creches conveniadas, dependentes dos repasses dos municípios. O cenário seria de caos absoluto em caso de não aprovação de um novo Fundeb, pois o prazo do atual expira em dezembro deste ano. O Fundeb é responsável por mais de 50% das verbas educacionais na grande maioria dos municípios brasileiros.
Com tudo isso, o país corre o sério risco de assistir a uma queda abrupta no acesso às creches, um dos principais ganhos educacionais deste século, apesar de ter ocorrido de forma desigual. Mas é inegável a evolução: a cobertura passou de cerca de 19% em 2004 para 33,3% em 2014, crescendo até 35,7% em 2019, um salto de mais de 16 pontos percentuais. O objetivo do Plano Nacional de Educação, bastante ousado, é que a cobertura chegasse a 50% em 2024. Na pré-escola, entramos na crise com 93,8% de cobertura. A meta do PNE era atingir 100% em 2016.
Quando abertos, esses números gerais relativos à creche mostram que a cobertura melhorou mais entre famílias com mais renda, e menos naquelas de renda menor, as mais necessitadas – famílias e crianças – de uma boa oferta para essa etapa. Como mostram estudos internacionais realizados de duas décadas para cá, o período de zero a três anos, sobretudo de zero a dois anos, é fundamental no desenvolvimento infantil. Boa alimentação, cuidados, estímulos adequados são decisivos para que as crianças tenham mais chances de desenvolver todo seu potencial enquanto sujeitos.
No caso das escolas de educação infantil de menor porte, o pesquisador do Insper Tadeu da Fonte, mencionado em matéria da BBC Brasil sobre o tema (Com debandada de alunos, escolas de educação infantil começam a desaparecer na pandemia, reportagem de Paula Idoeta e Lígia Guimarães, em 30/06/2020), relata que, entre 450 e 500 instituições particulares que ele tem acompanhado (de todos os níveis), as de educação infantil são as que mais perderam receitas. Enquanto a média perdeu 52%, as de EI perderam 56%. A diferença não é tanta, mas as escolas de educação infantil têm menos musculatura para sobreviver à queda (menos reservas, menos condição de fazer empréstimos, campanhas etc.).
Além da queda da oferta, se afastarmos um pouco o olhar para observar o campo como um todo, há um outro risco ainda não devidamente mensurado: o de muitos desses alunos serem absorvidos por grandes oligopólios educacionais, com concepções de educação infantil muito mais voltadas a preparar as crianças para o ensino fundamental do que para seu pleno desenvolvimento enquanto sujeitos. Isso pode ocorrer tanto com a entrada desses grupos na educação pública (com materiais ou gestão), como por meio da aquisição de pequenas escolas e seus alunos.
A diminuição da diversidade da oferta, em si, já pode ser deletéria. Ainda mais se ela ficar concentrada em poucos grupos que estejam mais interessados na veiculação de materiais para a educação infantil, calcados em concepções prontas da criança e dos ambientes, sem olhar para particularidades individuais ou regionais, com foco excessivamente voltado a desenvolvimento cognitivo e pouco olhar para a formação dos professores.
Essa possibilidade não parece nada desprezível, já que só resistirão à pandemia aqueles que tiverem fôlego financeiro extra. Muitas instituições públicas e privadas estarão lutando para se manter vivas e para pagar o endividamento que estão sendo obrigadas a fazer agora. Muitas escolas terão fechado ou diminuído sensivelmente a oferta de vagas. Ou seja, haverá muito espaço para uma expansão sem precedentes de meia dúzia de organizações. O líder de uma delas, aliás, foi bem claro ao dizer que “o que eu mais gosto é que toda crise é cheia de oportunidades”.