Foto: Hermes Rivera/Iso Republic
Publicado em 23/10/2019
A atual Babel mundial vive divórcio compulsório. Os últimos séculos continentalizaram o contato entre as culturas, tanto quanto iluminaram os abismos que as distanciam. Ardem as chagas da vivência que fazem da diferença a chaga intolerável: ignorância, xenofobia, fanatismo, racismo mútuo, desigualdade, misoginia, homofobia, crise de fronteiras, proteção à rede de privilégios das elites, obediência irrefletida, batalhas étnicas, idolatria do mercado sobre tudo e todos.
Juntas, essas chagas formam um sistema de pensamento sem que uma chaga precise da companhia de todas as demais para o conjunto produzir seus efeitos, como age a unida família de parentes que não se toleram. Tal sistema permite escolhas estratégicas sem que seja necessário ocupar todos os espaços, sem ser preciso ter todos os elementos disponíveis em sua loja de desumanidades legitimadas ou de falta de transcendência. Seus apelos nem necessitam invadir todos os poros e todas as veias em que podem frutificar porque se acomodam às possibilidades abertas pelo obscurantismo do momento.
Esse macrossistema nocivo à coexistência deve ser combatido, ferido, esvaziado. A resistência provavelmente não virá da metanarrativa totalizante e homogênea, o próximo esquerdismo, feminismo, liberalismo ou qualquer [-ismo] progressista. Se vier, é possível que seja tão bem-sucedida quanto mais orgânica; poética porque epidérmica; instintiva quando já cultural; uma guerrilha contra os lugares comuns da linguagem.
Pois sempre há outras formas de encarar diferenças sem a blindagem contra o contato, esse soro de pureza, retidão e horror.
Num mundo que é linguagem, nem é difícil constatar isso.
Confrontadas, muitas distinções entre idiomas refletem o horizonte de possibilidades da mesma preocupação humana – e elas são lembretes úteis, como espero mostrar nos próximos artigos. Em áreas inteiras do vocabulário, da semântica e da sintaxe, as culturas afirmam a si mesmas enquanto se completam quando parecem confrontar-se. Sentida diferentemente, diversamente nomeada, a experiência humana pode ser em muito parecida em lugares os mais diversos – a materialidade do mundo oferece níveis similares de resistência, apesar de línguas diferentes não só usarem palavras diferentes como dizerem coisas diferentes até quando parecem dizer a mesma coisa. De fato, não há lei de tradução que apague o resíduo de cada língua, a contribuição de cada cultura, a sintonia de cada época, as seleções prévias que deixaram traços em nossas interações e revelam as misturas em cuja unidade nos reconhecemos.
O efeito no longo prazo pode estar no murmúrio de séculos de conversação, contatos mútuos e exercícios sociais diários. Pois a linguagem não é só, como sugere Jurgen Habermas, o repertório de condições que capacita a pessoa a interpretar e a agir em sua comunidade. Ela se torna esse repertório enquanto não se reduz a ele. A língua é também o reservatório da experiência, o acervo produzido pelo desempenho humano ao interagir, as convenções criadas nas formas de expressão cultural e a história das interpretações de seus inúmeros textos (Umberto Eco). Os especialistas dirão que a linguagem é um sistema de signos. Desse sistema de signos deriva um sistema de proposições. E este sistema de proposições interfere na forma como lidamos com o mundo. Partilhar um idioma é participar de seus jogos de linguagem: se jogamos segundo as regras de um deles, herdamos raciocínios costumeiros e prioridades discursivas. Cada enunciação (nossa “jogada”) é livre até um teto, que são as coordenadas do jogo.
Partilhar um idioma, no entanto, não é aderir de forma incondicional a uma visão porque nós o atualizamos, agimos, criamos.
Aceitemos por hora que nossas condutas sejam escolhas de linguagem: se somos conservadores em relação a valores, costumes ou ideologias, tendemos a sê-lo em outros campos. Nossas certezas formam um sistema em que uma convicção atapeta outra. Mas práticas reacionárias povoam temperamentos liberais e vice-versa. Porque a língua é nossa esfera de repetição e de criação. Nossa inteligência pode estar “enfeitiçada” pela linguagem, mas ela é capaz de criar “contrafeitiços” ao vivenciar o contato e fazer esforço para pensar os próprios hábitos.
Em sua parte suculenta, afinal, a linguagem é interação, não simples mediação entre pensamento, o mundo e o ser. Ela não é mero instrumento para expressar o que se pensa. A linguagem é usada para comunicação, obviamente, mas tudo o que fazemos também o é: nosso visual, penteado, sorriso, tom de voz, até a maneira de andar. A língua propriamente dita passa mais tempo na mente do que na comunicação (Ataliba de Castilho). Sonhamos em nosso idioma e Platão já dizia que pensar é o diálogo silencioso de si consigo mesmo. Não pensamos primeiro e então expressamos o que foi pensado, pensamos ao nos expressar. Fora da linguagem, o pensamento seria tão indiferenciado que não se realizaria (José Luiz Fiorin).
A língua age na mente em pedaços, fragmentos paralelos, simultâneos e sobrepostos: o discurso interior é feito de fragmentos do discurso externo internalizados (Noam Chomsky). Se quisessem sobreviver, hominídeos do Paleolítico deveriam emitir ruídos particulares em resposta a sons específicos de outros hominídeos. Gostamos de pensar que substituímos essa dinâmica acidental e aleatória, acaso comunicativo de tentativa e erro, por um sistema de descrição lógico a fazer correspondências com o mundo e o eu.
A capacidade gramatical é uma estrutura interna à mente, inata, mas muitos fatos gramaticais se consolidam pelo método dos hominídeos mais do que por ideais sistêmicos. O mero saber partilhado da língua (o sistema) não garante compreensão mútua (Richard Rorty).
A estrutura comum nunca é tão evidente e constante para que a pessoa simplesmente a decore, domine e aplique aos casos. Ao menos não como a tradição gostaria, como se a língua fosse a estrutura da qual bastaria conhecer os dados constitutivos para que os envolvidos jogassem a mesma partida, com as mesmas regras e distâncias entre jogadores (Rorty, again). Mudanças no idioma parecem derivar de contínuas inferências, não da necessidade pétrea de adequação ao não linguístico (o mundo, o eu) ou de derivas previsíveis: há distintos repertórios de saberes e distintas necessidades de negociação de sentidos.
Digo isso porque há algo nos avanços fundamentalistas – não só nos religiosos obliterados. Está lá no homem lobo do homem, no gosto cultural viciado, na pedagogia do individualismo, na irrelevância acadêmica, no escudo das redes sociais, no paternalismo de Estado, na gordura da superficialidade.
Não estamos vivendo novo round entre religiosidade e secularismo. Ele já foi maior no passado. Vivemos algo novo: a luta aberta por hegemonia, de um jogo de linguagem ansioso por calar os outros, mas em um cenário congestionado de jogos nesta era de conexões on-line, superpovoamento e globalização.
Sejamos exagerados imaginando o dia em que o direito de todos dependa da retórica de alguns (de fé, mercado, política, ciência, arte etc.). O dia em que soará mal fugir de uma rede específica de discursos, suas construções sintáticas (ideias) e palavras (conceitos) preferidas. Por muito tempo confiamos que o nosso tema era Deus ou a autonomia, a liberdade ou o controle, o capitalismo ou o comunismo, o real e o ideal, a tradição e a negação.
O tema, atônitos o vemos pela brecha, pode ser a morte da pluralidade.
Porque língua é pensamento; linguagem é diversidade comungada. Um não é amputado sem que a outra não seja, talvez irremediavelmente, castrada.
Luiz Costa Pereira Junior
Doutor em filosofia e educação pela USP, jornalista atualmente radicado em Nova Jersey (EUA)