Fotos: Alice Vergueiro/Jeduca
São em torno de 14h30 quando o jornalista, voltando do almoço, pergunta à professora quantos alunos tem o colégio. Conduzindo várias crianças para alguma atividade, ela diz que não sabe. O jornalista insiste: “nem o número aproximado?”. “Não”, é a resposta seca acompanhada de um sorriso encabulado. Estamos na portaria de uma escola paulistana num dia que de repente virou noite, com o céu escurecendo e, segundo saberíamos depois, com a concomitante chegada dos efeitos de queimadas ocorridas nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil.
Naquele dia e no seguinte, a escola recepcionava um evento diferente de suas atividades rotineiras, o 3º. Congresso Internacional de Jornalismo de Educação, que reuniu 480 jornalistas, assessores de imprensa, educadores e responsáveis pela comunicação de organizações não governamentais. Situado num dos bairros mais arborizados e agradáveis de São Paulo, o Colégio Rio Branco, que tem à sua frente o Sion, outra escola que abriga as elites paulistanas, recebeu o evento pelo segundo ano consecutivo.
Com mensalidades que variam de R$ 2,4 mil a R$ 4,9 mil, dependendo da série e do tempo que os alunos permanecem na escola, o Rio Branco foi doado à Fundação de Rotarianos de São Paulo em 1946, depois de passar pelas mãos de Savério Cristóforo, seu fundador, de José Ermírio de Moraes (Votorantim) e de Antônio Sampaio Dória, educador responsável pela reforma do ensino público paulista nos anos 20 do século passado. Sampaio Dória foi um dos adeptos da Escola Nova, entre eles um dos que mais se preocupavam com a formação docente.
A era das fake news
É bem provável que o alagoano Dória seja praticamente um desconhecido entre os jornalistas de educação que, pouco depois das negativas da professora do Rio Branco, encheram o auditório localizado no terceiro andar do colégio. Temas sobre a história da educação não estão listados entre as atividades do evento, a não ser muito lateralmente. Estamos, afinal, na era das fake news. Sob o guarda-chuva temático do “Jornalismo de Educação na Era da Desinformação”, várias mesas de debates se voltam a como produzir informação confiável e garantir a credibilidade dos meios de comunicação. A essa questão foram agregados outros temas inescapáveis no atual momento da educação brasileira, como o Fundeb, o fundo da educação básica cuja lei expira no final de 2020; a formação de professores; a implementação da Base Nacional Comum Curricular, a tragédia de Suzano no início de 2019.
As novas vedetes do jornalismo e da comunicação em geral, como os podcasts, também estão em pauta. O que esses novos formatos podem agregar em termos de informação e como podem favorecer a comunicação com uma geração de hábitos de leitura e consumo de notícias radicalmente diferentes daquelas que se formaram até o final do século passado? Foram questões que permearam boa parte dos debates do Congresso.
Mas, voltando à mesa que aconteceu logo após as negativas da professora: ela prenunciava um tempo cinzento como aquele da nuvem que viajara até São Paulo. Mas isso acabou não ocorrendo. E, registre-se, graças à inusitada postura serena e firme do representante do governo Bolsonaro, Arnaldo de Lima Júnior, secretário de Educação Superior do Ministério da Educação. Lima fez seu papel: defendeu o Future-se, projeto do governo para o ensino superior que buscará flexibilizar – e aumentar, espera-se – as fontes e o volume de financiamentos para a etapa.
A desconfiança existente nas universidades públicas federais é que essas novas fontes de financiamento que, em tese, se abrirão com a criação de fundos venham a substituir o financiamento público, e não somar-se a ele. E que, ao abrir a possibilidade de o dinheiro ser administrado por organizações sociais (OS), isso represente interferência na autonomia universitária, em especial na escolha dos projetos de pesquisa a serem realizados.
Lima assegurou a disposição do governo de conversar sobre pontos que parecem obscuros. Disse que fundações de faculdades e universidades podem se transformar em gestoras dos fundos, apesar de isso não estar escrito no projeto. “Podemos incluir no texto”, assegurou. Ficou um tanto irritado quando o reitor da Universidade de São Paulo, Vahan Agopyan, disse que o Future-se não é um projeto acabado, e sim algo mais parecido com uma carta de intenções. Mas o reitor da USP apenas expôs a habitual superioridade com que sua instituição olha para tudo o mais no Brasil. E foi político, afinal, a USP recebe um bom número de bolsas da Capes, autarquia ligada ao MEC.
A nova reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Denise Pires de Carvalho, a primeira mulher eleita para o cargo, também pareceu em compasso de espera. Sem dinheiro para pagar suas contas de luz, ela iria se reunir com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, e com o próprio secretário dois dias depois em Brasília. Não seria de bom tom discutir antes de passar o chapéu.
De todo jeito, não deixou de expressar temor quanto à intenção do governo de atrelar verbas ao desempenho das universidades, naquilo que Lima chamou de “premiar o esforço”. Para Carvalho, há várias medidas possíveis para essa avaliação e as instituições têm objetivos diferentes.
Família, sagrada família
O “conflito ideológico” aconteceu na manhã da mesma segunda-feira, na segunda sessão dos debates: o dissenso absoluto, em relação ao público e aos debatedores, protagonizado pela deputada federal Caroline de Toni (PSL-SC). Toni defendeu enfaticamente que as famílias devem orientar seus filhos segundo os próprios valores quanto a questões de gênero, por exemplo. “Se mais tarde, na adolescência ou na juventude, eles escolherem outra opção, tudo bem. Mas não na infância.” Toni chamou de “kit gay” o polêmico kit anti-homofobia, cuja distribuição o governo Dilma Rousseff (PT) cancelou por pressão da bancada evangélica, com o então deputado Jair Bolsonaro à frente na mobilização.
A deputada também justificou seu projeto de retirar do educador Paulo Freire o título de patrono da educação brasileira, concedido em 2012. Para ela, por ele ter “ideias de esquerda” sua indicação implicaria violação do artigo 206 da Constituição Federal, em seu inciso 3º, que prevê que o ensino será ministrado segundo os princípios do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas”. Quando argumentei que a atribuição do título de patrono não significava que Paulo Freire seria a única e messiânica orientação pedagógica para a educação brasileira e qual o problema então da homenagem, ela respondeu incessantemente a mesma coisa. “Porque ele é de esquerda. Porque isso fere o artigo 206, inciso 3º, da Constituição Federal.” As frases se sucediam como nas perguntas do segredo das bolachas fresquinhas. Tal defesa da Constituição talvez faça a deputada ter seu nome lembrado como futura candidata a membro do Supremo Tribunal Federal.
Na mesma mesa estiveram os deputados Pedro Cunha Lima (PSDB-PB) e Tabata Amaral (PDT-SP). Ambos se esforçaram para não centrar os debates em torno de questões ligadas ao debate ideológico, como gênero e perfil das famílias brasileiras, preferindo tentar um consenso naquilo que consideram primordial para a educação brasileira neste momento: a aprovação de uma nova versão do Fundeb e a priorização de evidências científicas para direcionamento das políticas públicas de educação. A jovem Tabata já ganhou status de celebridade da educação, como se pôde ver ao final do debate. Foi cercada por jornalistas e presentes em geral. Só não atrasou a sessão seguinte porque antes havia o almoço.
Nos debates mais voltados ao jornalismo de educação propriamente dito, um dos pontos ressaltados, em especial pela professora LynNel Hancock, da Universidade Columbia, foi a necessidade de os profissionais não se deixarem desviar por estratagemas diversionistas de governantes. “Devemos utilizar tudo o que conseguimos como jornalistas para tentar publicar as histórias que chamem atenção para a área de educação, por mais difícil que isso seja em momentos de ‘barulheira’ política”, disse ela, segundo menção do site da Jeduca.
Ambiente hostil
No painel de abertura, que contou com os convidados José Roberto de Toledo, da revista piauí, e Paula Cesarino Costa, ex-ombudsman da Folha de S.Paulo e atual editora de diversidade do mesmo jornal, os convidados analisaram como trabalhar em meio a um ambiente hostil ao jornalista. Se até o final do século passado os jornais pautavam os grandes temas sociais, com o advento primeiro da internet e depois das redes sociais, houve, como chamou Toledo, uma “desintermediação” entre público e fontes.
Por esse motivo, o jornalismo não deve se ater ao mero relato do que dizem os entrevistados, mas assumir um lugar de comando (a palavra é minha) do próprio texto. Ou seja, há uma história a ser contada que muitas vezes transcende em muito o que dizem os entrevistados, quando não os desmente. Apurar o quanto for possível para trazer o relato mais próximo da realidade a que se conseguir chegar é o desafio do jornalismo.
E, nesse panorama, em que formatos variados estão presentes, a credibilidade do jornalista é um bem que deve estar presente em qualquer que seja o meio, o jornal ou o podcast e tantos outros, frisou Paula Cesarino Costa.
Os podcasts são, efetivamente, as grandes vedetes do momento. Por razões diversas, como o tom eventualmente mais casual ou a possibilidade de serem ouvidos em meio a outras atividades cotidianas, os podcasts constituem a grande aposta dos produtores de mídia digital para 2020. Segundo pesquisa do Ibope divulgada no primeiro semestre de 2019, 40% dos brasileiros já tiveram contato com o formato, enquanto 19% são ouvintes assíduos, o que representa, respectivamente, 50 milhões e 16 milhões de internautas. Entre os desafios da nova mídia, segundo a pesquisa, um precisa ser vencido para o formato emplacar de vez: fazer com que as mulheres ouçam mais programas. Elas, afinal, são as grandes leitoras do mercado, representando, em média, 70% dos consumidores de revistas, por exemplo.
Zumbis em terra de gente
Mesmo com a tentativa do Colégio Rio Branco de preservar sua “intimidade” dos jornalistas e estranhos ali presentes – afinal, somos contumazes invasores da privacidade alheia –, a escola parece ter respirado, e muito, a atmosfera do Congresso. Fosse nos elevadores que iam do térreo ao terceiro e de lá ao quinto andar, onde os lanchinhos – ou coffee breaks – foram servidos, em alguns casos sob o patrocínio de empresas interessadas em dialogar com “o pessoal da imprensa”, o movimento de uma trupe de quase 500 pessoas não poderia passar incólume.
Os jornalistas que cobrem educação, até há poucos anos órfãos de qualquer iniciativa gregária, normalmente imbuídos de espírito missionário para cavar espaço entre pautas dos mais variados assuntos nas editorias de cidades, vivem agora a apoteose de serem objeto de assédio. É bem verdade que ele já acontecia desde a virada do século, mas agora o esquema parece mais profissional e organizado. Indiscutivelmente, a educação básica entrou na pauta dos meios de comunicação e das políticas públicas de forma robusta.
Com isso, trouxe também interesses diversos. Por esse motivo, o conjunto de logotipos de apoiadores do Congresso, estampado ao lado do palco, causa dúvida em quem vê as marcas de grandes empresas e fundações empresariais como sutis defensoras da “flexibilização” da obrigação da oferta pública, gratuita e universal. As empresas seriam, para muitos, emissárias de uma privatização do ensino público ou do espírito público. Elas, ao contrário, se veem como substitutas, em muitas instâncias, de um estado inoperante e perpetuador de iniquidades. Em realidade, há para todos os gostos, pois não se pode dizer que o terceiro setor diretamente ligado às grandes corporações constitua um grupo coeso, com interesses totalmente convergentes. Provavelmente, nem no discurso.
Longe dali, nas escolas de regiões afastadas ou vulneráveis, professores têm de se deparar com a violência do tráfico de drogas, com famílias que possuem constituições as mais diversas, muitas delas conduzidas por mulheres que trabalham e pouco conseguem ver os filhos durante a semana. É entre esses dois mundos, em tudo opostos, que os jornalistas de educação têm de achar boas histórias e, a partir de reflexões consistentes sobre elas, produzir informações e dúvidas que ajudem o país a sair do conflito ideológico e da ignorância. O caminho entre esses dois polos é denso, variado, às vezes impenetrável, outras vezes compensador, quase sempre povoado por lobistas dos mais variados matizes. Trata-se de um grande dilema, pois todos os processos educacionais são singulares. Mas como ressaltar apenas singularidades quando o necessário é o comum a todos? Talvez aquela professora do início do texto respondesse apenas: “não sei”.