Texto publicado em 03/09/2020
Tradução: Renato de Mattos Motta (https://www.facebook.com/renato.mattos.motta)
Foto: Ingo Jakubke/Iso Republic
Meu desejo é que, neste século em que vivi,
não houvesse crianças e idosos abandonados.
(Alicia Moreau,
declarada “Médica do Século 20”)
Duas faixas etárias esquecidas, dois extremos da vida, vieram à tona entre os principais temas de hoje, neste momento de especial adversidade: as crianças e os idosos. Centenas de idosos viviam em más condições, trancafiados em residências que deixavam muito a desejar.
De repente, com uma aterrorizante pirueta de hipocrisia, aqueles que até agora nada haviam feito por eles mostram-se escandalizados, e lançam aos quatro ventos uma campanha para que esses idosos comecem a existir depois de já terem morrido.
Em nossas sociedades modernas, transformamos rapidamente os recém-chegados ao mundo em alunos, para que aprendam a reproduzir um sistema que não valoriza as próprias crianças e os velhos. Os que estreiam na vida não são preparados para pensar por conta própria, para adquirir autonomia, para crescer em capacidade de decisão… Não. Até mesmo aqueles que pomposamente clamam pela liberdade da educação consideram que essa liberdade consiste em que meninos e meninas pensem conforme a cabeça desses adultos. É inútil tentar demonstrar-lhes esta flagrante contradição. É inútil fazer-lhes ver que a escolaridade deve ser uma parte da infância e não toda a infância.
Faz alguns anos, em 2013, fiquei assustado ao ler a notícia de que o Ministro da Economia japonês, cujo nome não tenho vontade de lembrar, declarou que as pessoas de idade avançada “deveriam morrer o mais depressa possível”. Não sei se esse energúmeno milionário, que então contava 72 anos, deu a si mesmo como exemplo daquilo que pregava. Antes mesmo dessa declaração, ele já havia qualificado os aposentados de seu país — que na Espanha deram uma grandiosa lição de dignidade e de coragem — de “gagás”, ou seja, “pessoas cujas funções mentais estão debilitadas por causa da idade”.
No forçoso confinamento atual, os pequenos, não podendo frequentar a escola, estão morrendo como alunos, mas começam a viver como meninas e meninos.
Nem idosos nem crianças se encaixam numa sociedade em que o culto ao consumo, à produtividade e à utilidade são a religião dominante. As meninas e meninos, porque “ainda” não são úteis, dependem dos outros e precisam de constantes cuidados. Os idosos, porque “já” não são úteis, dependem dos outros e precisam de constantes cuidados. E eis aqui um evidente e inusitado paradoxo: as pessoas que definem quem é útil e independente costumam depender, nos mínimos detalhes, de pessoas que realizem para elas inúmeras tarefas cotidianas. Quem leva a sociedade para a frente são pessoas totalmente dependentes de quem lave e passe suas roupas, que ponha comida no seu prato, que arrume a sua cama, que limpe sua casa, que engraxe seus sapatos… e boa parte daqueles que fazem tudo isso são idosos a quem não se paga sequer com uma demonstração de carinho.
Por outro lado, quase de forma clandestina, os idosos e as crianças confluem no espaço pouco valorizado dos cuidados. As avós e avôs renascem ao cuidar dos seus netos, e esses netos renascem como meninas e meninos, graças à atenção que recebem dos pais de seus pais.
Os dois extremos se abraçam, compreendem-se, valorizam-se nesses encontros revitalizadores. “Meus netos me deram uma energia que eu pensava ter perdido”, ouvi uma avó dizer na rua. E outra: “Perto deles eu nem percebo as minhas mazelas”. E um terceiro: “Minha neta encheu minha vida de alegria”. Os extremos se tocam e se enlaçam no sentimento do carinho compartilhado.
O selvagem esquecimento de idosos e crianças é agora como uma bofetada em nosso rosto. E nos envergonha. A vergonha é um sentimento revolucionário. Quando sentimos vergonha de nos chamarmos humanos perante esse abandono desumano, tomamos a decisão de fazer o possível para que essa ignomínia não se repita. Bem-vindo seja tudo aquilo que serve para nos fazer lembrar de nossos queridos idosos — sim, e eu sou um deles! —, mas sem deixar de trabalhar verdadeiramente para que ninguém caia de novo no escuro poço do esquecimento.
Estou certo de que os nossos desaparecidos, que tão generosos foram conosco, pediriam menos choro e mais ações; ações que lhes devolvessem para sempre a memória e a dignidade. Pediriam que os considerássemos de verdade, sem discursos vazios e oportunistas, sem liturgias grandiloquentes. Pediriam que, além de lhes dar valor, valorizássemos também as crianças.
Crianças e idosos são esses extremos que, dependendo do modo como os tratarmos, definirão a fronteira entre a civilização que nos eleva e a barbárie revestida de luxo, que nos degrada.
Paco Abril nasceu em Teruel, na Espanha. É escritor, crítico literário, artista plástico, destacando-se na Europa por seu trabalho como incentivador da leitura.