Foto: Hermes Rivera/Iso Republic
Texto publicado em 29/04/2020
A realidade é uma construção da linguagem? A ideia é antiga, tem jeito de exagero e a época atual não facilita quando até reality shows se revelam fruto de script concebido por redatores e produtores de TV. Na verdade, nem precisamos de atrações do gênero para ver isso. Você recomenda um filme a um amigo. Jamais gastará duas horas para narrar a história (é preferível que o amigo veja o filme). Você resumirá eventos, enfatizará trechos, mudará a cronologia. Na prática, o real nos escapa, é fugidio. Movimentos de observação e registro tentam domá-lo, mas a adaptação nunca é total. Os fatos existem quando narrados – o que significa que passaram a dançar conforme o ato de narrá-los.
O cachorro morde o rabo: a realidade está à frente e é nossa cria. Essa ideia não chega a contaminar a confiança em algo palpável a que enquadramos sob o nome de “realidade”, mas querer descrever a realidade a outros é da ordem da representação. É transcriação, não transcrição. O real não será produto arbitrário da imaginação porque nunca se trabalha sobre o desconhecido total. A realidade é sempre resultado de uma cadeia materializável de eventos, passível de ser rastreada, de ser sintaticamente organizada e verificada. Os fatos que escolhemos para descrever uma realidade não existem isoladamente. Ganham confiabilidade quando inseridos nunca cadeia de eventos que a comunidade de falantes já consagrara. Se os critérios que usamos são confiáveis, a realidade que apresentamos tenderá a sê-lo.
A apresentadora adolescente de programas de TV constrói sua imagem propagando o “marketing da virgindade”: sempre que pode, ela garante que se manterá virgem até o casamento.
No aniversário de cinco anos de namoro da apresentadora, um repórter procura o casal separadamente. À apresentadora, ele dá os parabéns e pergunta: “Você continua virgem?” Confirmação categórica: ela se promove como exemplo para meninas de sua faixa etária. Pouco depois, o repórter vai ao namorado e: “Nestes cinco anos, você sempre foi fiel?” Sim, respondeu o rapaz, pois a namorada é o amor de sua vida.
Sai a reportagem e a manchete anuncia: “Namorado de apresentadora não faz sexo há cinco anos”. O repórter manipulou os fatos, claro, mas não é possível assegurar que mentiu. Sua conclusão é deduzida das afirmações que coletou. Ele estabeleceu um sentido aos dados que apurou, consciente de não ter chegado à “verdade dos fatos”.
Nossa tradição escolástica, jurídica, acadêmica e jornalística costuma nos convencer de que um caso sempre tem dois lados, um contra e outro a favor da questão disputada. Ocorre que todo caso tem tantos “lados” quanto se investigue e o mero ceticismo circular sempre pode ser enganado por hipóteses que se anulam mutuamente. É possível testar cada posição ou contradição com novos dados e verificações, até que a incongruência inicial seja descartada e reste só um relato em que se possa confiar. In dubio pro reo. Mas quem é réu num mundo que se faz discurso?
Fonte: Miguel R. Alsina. La construción de la noticia. Barcelona: 70 Hydras, 1989.