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Texto publicado em 09/03/2020 e (ligeiramente) modificado em 11/03/2020
A contínua fabricação de fenômenos patafísicos a que temos sido submetidos nos tem afastado dos temas que até há pouco tempo eram centrais na educação brasileira. Da alfabetização à formação docente, duas áreas em que houve mudanças profundas do final do ano para cá, passando pela aprovação do novo Fundeb, mais presente e urgente no Congresso por se tratar do dinheiro para o sustento da educação básica, tudo parece ir perdendo apelo, como se a educação, ante a desfiguração institucional, significasse algo igual à maneira com que sempre foi tratada: prioridade de discurso que mascara sua irrelevância na prática do poder.
Se o atropelamento que nossos rinocerontes vêm promovendo oculta o conhecimento do que será feito da alfabetização ou silencia o duelo entre os espadachins da técnica/prática versus os defensores da política na formação de professores, muito disso se deve aos que discutem sentados no banco da praça, vendo a manada passar.
Ao que parece, as correntes de centro-direita, centro, centro-esquerda e esquerda não se deram conta de que o momento que estamos vivendo não é o melhor para que dissensões entre quem até outro dia conversava aumentem de tom e desfaçam a comunicação que durante anos levou ao diálogo.
Quando há no horizonte uma ameaça de não aprovação de uma emenda constitucional relativa ao Fundeb que se aproximava de um acordo após quatro anos de conversa, não é realista bater e bradar que só o aumento de 40% da contribuição da União é aceitável. Se um aumento de apenas 5% é muito pouco, os 40% são claramente irrealistas e não servem ao propósito de ajudar os municípios, pois não têm a menor chance de aprovação. Que se chegue a um ponto intermediário a resultar em melhoria menor, mas imediata, com revisão em alguns anos.
Da mesma forma, a queda de braço entre os autênticos (sim, de certa forma lembram o velho MDB) da formação docente, que se negaram a negociar o texto do parecer apresentado no Conselho Nacional de Educação, não parece levar em conta alunos e professores que estão hoje em dia nas escolas. Se há razão para reclamar de uma rasteira que veio sendo aplicada desde a gestão do então secretário de Educação Básica do MEC, depois ministro, Rossieli Soares, parece que seria justo fazer uso dos palcos de discussão onde tudo isso aconteceu (comissões, CNE etc.). E se a visão de mundo que permeia a proposta enfim aprovada difere visceralmente da anterior, não parece correto rasgá-la integralmente a priori, como se dela nada se salvasse.
Sem o cotejo dos pontos de cada uma e do diagnóstico do que temos hoje na educação brasileira, essa posição de não aceitação absoluta funciona apenas como uma salvaguarda para que se diga “não tenho a ver com isso, eu avisei”.
A educação brasileira está repleta dessas disputas em que ideias trôpegas se travestem de grandes conceitos, gerando repetições infinitas de expressões esvaziadas ou vazias de per se. Em questões como a alfabetização, por exemplo, talvez já tenha passado da hora de testarmos, em municípios com características socioeconômicas e culturais equivalentes, com redes públicas igualmente equivalentes sob esses pontos de vista, as diferentes propostas presentes no campo (os fônicos puros, os construtivistas puros à la Delia Lerner e os adeptos do letramento), monitorando os processos e acompanhando-os por todo o fundamental 1. Obviamente isso só poderia ser feito com redes que voluntariamente aderissem a cada uma das propostas, por convicção, e que preenchessem os requisitos para que a comparação partisse de pontos equivalentes.
Se feito com o acompanhamento de universidades que registrem virtudes e problemas de cada abordagem, trabalhando-as e as recalibrando com coordenadores e professores dessas redes, poderíamos chegar a conclusões bem mais robustas sobre essas propostas do que as discutindo como dogmas e pontificando cada uma delas como se fosse o Corão.
No caso das universidades públicas, seria uma ótima oportunidade para uma maior aproximação em relação a escolas e redes públicas, duas instâncias que muito reclamam da distância da academia em relação a elas. (Registre-se: há muitas ações de universidades públicas em conjunto com escolas, mas na maior parte das vezes são fragmentárias e pouco institucionalizadas, dependendo do trabalho de alguns docentes.)
Outra questão que parece intrigante no que diz respeito às grandes associações de educadores (os autênticos) e aos sindicatos de docentes da educação básica: a formação proporcionada pelas universidades privadas é constantemente recriminada e acusada de ligeira. Em 80% a 90% dos casos, esses grupos estão cobertos de razão. Mas duas coisas precisariam vir à baila para que essa crítica fosse mais respeitada. A primeira é a de que há faculdades (ou institutos de educação, e talvez aí esteja o ponto) capazes de oferecer uma formação de nível bastante mais elevado que a média, talvez partindo de outras premissas teóricas e outra visão de mundo em relação às universidades, mas mesmo assim respeitáveis.
E o segundo ponto é que os mesmos alunos malformados pelos outros 80%/90% das instituições privadas, que se tornarão professores precários e assumirão sobretudo as classes iniciais do fundamental 1, momento-chave na aquisição de ferramentas essenciais ao desenvolvimento infantil, assim que passam a integrar “a categoria” tornam-se “companheiros de lutas” cuja estabilidade não pode mais ser questionada. Será que não está na hora de professores formadores e dos próprios professores das redes pensarem no estabelecimento de uma régua mínima para o exercício da profissão? E será que essa maior seletividade não pode ajudá-los na concretização de um dos passos mais relevantes na valorização da carreira, que é a elevação do patamar inicial de salários?
A verdade é que os rinocerontes estão passando, derrubando tudo, e se aqueles que estiverem sentados nos bancos à direita e à esquerda desse enorme pasto que estamos virando (afinal, os rinocerontes da floresta são os que dispõem de maior liberdade até agora) não fizerem nenhum tipo de gesto em direção ao outro lado, talvez em pouco tempo não sejam nem memória.
Como escreve Jorge Coli em seu artigo de 8 de março, na Ilustríssima (O rabo da salamandra), “enquanto não houver oposição que se una e combata como força coesa, capaz de resistir e, mais, de vencer, nada mudará”*.
É preciso não só que as forças democráticas, mais ou menos à esquerda, mais ou menos capitalistas, encontrem novas vozes e lideranças, saiam do comodismo de suas posições cimentadas, conversem, estabeleçam pontes, pautas comuns, ainda que apenas para a retomada de um curso, digamos, normal da política e da educação.
E não esqueçam que no Brasil de hoje existe um exército de pessoas deixadas à margem num mundo que promete tornar-se muito mais inóspito com o domínio da inteligência artificial. Se jovens advogados e médicos terão a entrada no mercado de trabalho em muito dificultada pelo fato de as funções iniciais dessas carreiras estarem sendo tomadas por robôs e congêneres, mais aptos e rápidos para trabalhos repetitivos e com poucas variáveis, o que dizer dos cerca de 43 milhões de analfabetos funcionais e de outros quase 35 milhões que estudaram, no máximo, até o final do ensino médio, estes na maioria, com idade acima dos 25 anos? Estamos falando aí de algo em torno de 45% do total da população brasileira.
Esses adultos e adultos jovens têm sido vítimas do crescente abandono a que tem sido submetida a Educação de Jovens e Adultos no Brasil. De 2008, quando registrou um total de 4,94 milhões de matrículas, a 2019, quando estas totalizaram 3,27 milhões, assistimos a uma queda de 33,8% dos matriculados na modalidade. Questão aliada ao fato de que, cada vez mais, as escolas regulares de ensinos fundamental e médio utilizam como estratégia de “manutenção da ordem e da disciplina” a prática pouco alardeada de “empurrar” aqueles com maior defasagem idade/série para as classes de EJA, assim que atinjam as idades de 15 e 17 anos, mínimo necessário para que entrem, respectivamente, em classes de EJA/Fundamental e EJA/Médio. Do total de matriculados em 2019, 1,05 milhão (32,2%) eram menores de 20 anos, a grande maioria meninos (649 mil, contra 405 mil meninas). Quando a essa faixa etária se acrescenta a dos alunos de 20 a 29 anos, eles totalizam 62,14% dos estudantes da modalidade. Se pensarmos nos de 30 a 39 anos completando o grupo com mais possibilidade de inserção no mercado de trabalho, chegamos a 77,74% dos alunos de EJA.
Ao mesmo tempo, a educação profissional em EJA totalizou 36.750 matrículas em 2019, num total de 1,9 milhão. Enquanto o ministro da Educação e o Presidente da República brincam de redes sociais, há um enorme vazio de perspectiva para essas populações. Hoje, as oportunidades mais claras para a parcela mais jovem dessa brigada de subeducados estão no tráfico de drogas, nos sindicatos do crime, nas milícias. Quem souber se comunicar com ela e tiver algo de concreto a oferecer para incorporá-la ao mundo da cidadania pode ter a chave de muitas portas em mãos.
Um plano articulado para aumentar de forma consistente a oferta de educação profissional, melhorar a formação inicial dos professores e a alfabetização, fixando os professores em uma escola, com dedicação integral, representaria uma grande revolução num prazo de 10 anos. Se até lá os rinocerontes deixarem algum terreno fértil.
*OBS – Na transposição do artigo de Jorge Coli para a internet, o título original, da versão impressa, transformou-se praticamente na citação aqui mencionada.