A lenda do lobo solitário

Um grito inesperado em meio à multidão foi o grão de areia que fez cair o regime de Nicolae Ceauşescu, presidente da Romênia de 1974 a dezembro de 1989

Foto: npr.org

Texto publicado em 23/04/2020

               O ditador Nicolae Ceauşescu acabara de conquistar mais uma eleição de novembro para novos cinco anos de poder na Romênia. Mas o regime dava sinais de decadência acelerada. Em 21 de dezembro de 1989, o governo já não tinha mais total controle de cidades como Timişoara, Lugoj e Cugir, oeste do país. Para refrear os ânimos, o presidente convocou uma manifestação “espontânea” de apoio ao regime na Praça do Palácio, em frente ao Comitê Central, no centro de Bucareste. Um dia antes, Ceauşescu ocupara a rede nacional de rádio e TV com um discurso feroz, que alarmou o público: se um mero protesto em Timişoara provocara reação tão forte, algo sério estava ocorrendo.

               Ao meio dia da quinta-feira, quatro dias antes do Natal, quase 100.000 trabalhadores foram transportados para entoar cânticos e adulações ante o comitê. Ceauşescu discursava há poucos minutos quando uma “poderosa pancada de trovão”, talvez só um tumulto, um estouro de fogos, um grito, paralisou o ditador.

               O relato a partir de agora é confuso, com versões que se desmentem, mas a mais vigorosa delas traz um oposicionista de direita chamado Nica Leon, que usou o anonimato na multidão para gritar pela causa rebelde de Timişoara. Teria sido quase um uivo de lobo, mas as pessoas ao redor parecem ter pensado que “Vida longa a Timişoara!” era um novo slogan pró-regime e fizeram coro. Quando Nica, ou seja lá quem, berrou “Abaixo o ditador!”, apoiadores de Ceauşescu perceberam o próprio erro e forçaram passagem para se afastar de Nica, e quem os via fugir forçou caminho para sair da praça e o que era movimento nervoso de pernas se tornou corrida sem freio, o rastro de bandeiras e faixas largadas pelos manifestantes.

               As varetas dos cartazes foram pisoteadas, gritos assustados correram a praça como se fossem vaias e bombas de efeito moral foram lançadas contra os anticomunistas que queriam entrar na praça, não se sabe se antes ou depois dos gritos de protesto. O que se sabe é que o microfone de Ceauşescu captou “Açougueiro”, “Timişoara, Timişoara!”, “Abaixo o ditador!” enquanto a imagem de um homem confuso corria por satélite em todo país. Segundos intermináveis irradiaram um homem desamparado, acenando para acalmar o público. A transmissão foi interrompida e três minutos depois, retomada. Mas o estrago fora feito: a ousadia ante o líder repressor inspirou cidades da Transilvânia (Braşov, Sibiu, Cluj e Tirgu Mures) em atos organizados naquela tarde.

               Em abril de 1990, Petre Mihai Bacanu, editor do Romênia Libera, apresentou os operários que teriam sido os heróis do comício. É então que Nica Leon, o líder de um partido de direita e fundador da Anistia Internacional na Romênia, foi identificado como o homem que ousara gritar no momento crucial da fala de Ceauşescu.

               Quem sabe o barulho de petardos tenha vindo antes do grito espontâneo. Quem sabe foi explosão terrorista, microfonia ou pigarro sônico dos autofalantes, e sob a proteção do ruído sem origem a praça aproveitou para limpar a garganta há muito recalcada. Quem sabe o pânico tenha vindo da transmissão de ondas sonoras agudas fora do alcance da audição ou de manifestantes não identificados, que cutucavam as pessoas com cacetetes gritando “Eles vão nos matar!” Talvez tudo tenha começado pouco antes, com os opositores do regime forçando entrada na Praça do Palácio a que estavam vetados, e as forças do regime exagerando tanto na retaliação que a multidão reagiu. Quem sabe tudo não passou de iniciativa isolada de um corajoso ou enfurecido por estar na multidão de autômatos. Ou um golpe orquestrado pela ala insatisfeita do establishment ou pela máquina de derreter governos do capital transnacional, e na incerteza narrativa o instante catártico tenha sido menos espontâneo do que parecia.

               O fato é que a interrupção do discurso e o espanto incrédulo de Ceauşescu foram o ponto de virada de uma nação, o “petardo da felicidade”, como seria chamado depois, algo imprevisível demais para ser planejado, assim como a explosão isolada poderia dispersar uma multidão, não necessariamente fazer as pessoas agirem contra as instruções que acatavam com fervor e medo. A frase solitária gritada na multidão pode, afinal, ter mesmo desencadeado um movimento que as leis da física teriam dificuldade de traduzir em ação e reação.

               Esse foi o começo da revolução. Uma semana depois, Ceauşescu estava morto.

Fontes: Banksy. Guerra e spray. Trad. Rogério Durst. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012: 23. / Richard Andrew Hall. The archive of the Romanian revolution of december 1989. https://romanianrevolutionofdecember1989.com/2010/12/21/

SAIBA MAIS

O documentário Videogramas de uma Revolução (1992), de Haron Farocki e Andrei Ujika, traz vários registros da queda do governo de Ceauşescu feitos a quente, tanto durante a manifestação relatada acima como nos dias seguintes, quando houve intensas disputas pelo poder e pela posse dos meios de comunicação locais. Leia os comentários em História em Rede.

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Curtas

  •   Teve início em 29/06  a websérie “Caminhos do Devir – Volta às aulas pós-Covid-19”, com o debate sobre “Como aplicar a gestão de crises para planejar a volta às aulas de forma segura”. Os educadores e sócio-fundadores da Devir Projetos Educacionais, Luis Laurelli e Eloisa Ponzio, além do consultor Flávio Schmidt, consultor em gestão de crises do Grupo Trama Comunicação, analisaram as estratégias, cuidados e precauções para garantir uma volta às aulas que possa assegurar a saúde de professores e crianças e a tranquilidade das famílias. A conversa teve a mediação do editor do Trem das Letras, Rubem Barros. O encontro marcou também o lançamento do e-book “A Covid-19 nas escolas e o caminho para a retomada do presencial”, disponível para download, que pontua sobre os passos da retomada.  Texto publicado em 25/06/2020

  • O ano de 2020 marca o final do mandato de 12 dos 24 conselheiros do CNE, o Conselho Nacional de Educação. A primeira lista com sugestões de substitutos, deixada pelo ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, provavelmente na correria a caminho do aeroporto, era composta principalmente por olavistas. Gerou resistência até dentro do próprio governo Bolsonaro. Diante do freio, puxado pelos militares, o ministro interino, Antonio Paulo Vogel de Medeiros, está fazendo uma nova rodada de discussão para a escolha de outros nomes.  A Casa Civil será um dos principais interlocutores para definir a lista final. Se o padrão das escolhas continuar o mesmo de outras áreas, é provável que as escolas cívico-militares ganhem fôlego inaudito. Texto publicado em 25/06/2020

  • Além do Fundeb, é preciso ficar de olho na possível votação da Medida Provisória 934, que estabelece normas de excepcionalidade para a educação básica e superior em 2020. O relatório da deputada Luísa Canziani (PTB/PR) manteve entre as emendas que devem ir a plenário a liberação da obrigatoriedade do cumprimento das 800 horas para a educação infantil e de oferta da educação a distância na mesma etapa. A relatora deixa a decisão nas mãos dos gestores municipais. Além de contrariar todas as evidências científicas e pedagógicas que enfatizam os prejuízos da educação a distância para as crianças de até 5 anos, a medida pode significar a abertura da porteira para os grupos privados que atuam no negócio da educação a distância. Com as redes de ensino sufocadas pela falta de dinheiro, com aumento das despesas por causa da pandemia e queda na arrecadação de impostos de até 24%, impactando diretamente no Fundeb, principal fonte de recursos para a educação básica pública, a EAD pode ser vista por muitos como solução milagrosa. Mas será apenas um instrumento para cumprir a obrigação legal de oferta de ensino. E inadequado, no caso da educação infantil. É preciso ver o que falará mais alto, se o rigor burocrático ou o bom senso. Texto publicado em 25/06/2020

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