Foto: Maurício Fidalgo/Globo
Publicado em: 7/10/2019
A educação nunca teve muito espaço como tema central das produções da teledramaturgia brasileira. É possível lembrar de muitos professores como a Márcia, vivida por Malu Mader em O dono do mundo, mas seus principais atributos raramente estiveram ligados à sua excelência profissional ou ao grande destaque social de seu lugar de trabalho.
De fato, os nossos personagens principais – heróis ou vilões – são mais ligados ao mundo dos grandes negócios. Médicos, engenheiros, empresários, empreendedores da internet, há uma infinidade de exemplos de profissionais – ou pilantras – sempre bem engajados no mundo do dinheiro.
Mas, com a educação entrando em pauta nas discussões sobre o destino nacional, não tardou que ela chegasse também às séries televisivas. E com raro destaque para uma das etapas mais escanteadas das políticas públicas nacionais, a Educação de Jovens e Adultos. Hoje com 3,5 milhões de matrículas (2018), número que tem caído ano a ano apesar de o público que poderia se beneficiar dela ser incrivelmente grande, a EJA é o universo de Segunda chamada, série que estreia na Globo nesta terça, 8 de outubro.
Nela, os atores Debora Bloch, Paulo Gorgulho, Hermila Guedes, Thalita Carauta e Silvio Guindane vivem um grupo de professores que compra a briga de lecionar sem condições para alunos que têm tudo para evadirem, mas que, quando entendidos, dão um excepcional valor à educação. A personagem de Debora Bloch, a professora Lúcia Helena, resume o espírito do grupo em uma sentença: “eles podem desistir da educação, mas eu não desisto deles”.
A série foi escrita após as roteiristas Julia Spadaccini e Carla Faour pesquisarem durante dois anos o universo de escolas noturnas cariocas com classes de EJA. Elas se surpreenderam com o que viram, em especial no que diz respeito à dedicação dos professores.
“Não conhecemos nenhum professor que pudéssemos falar ‘não, esse cara não está com vontade de dar aula ou está fazendo nas coxas’. Pelo contrário”, diz Spadaccini, que se sente tão imbuída do espírito de equipe que viu ali que pede que o nome de sua parceira Carla Faour seja também creditado nesta entrevista.
A ideia do heroísmo dos professores, tão mencionada por muita gente da educação como negativa, está presente na visão das entrevistadas. Mas é natural que assim o seja. Como o protagonismo da educação é muito recente, é normal que quem esteja de fora ainda não questione ou reivindique parâmetros mais profissionais e menos de sacerdócio para os professores.
Mas, além da dimensão humana percebida, as autoras também ressaltam outra questão importante: o reconhecimento de que todos têm direito à educação. Afinal, o país é composto por 100% de seus habitantes.
A educação não costuma ser protagonista na dramaturgia televisiva brasileira. O que foi mais difícil para trazer esse universo para as séries televisivas? Os recursos, em termos de técnicas de roteiro, diferem muito do tratamento de outros assuntos?
Não. Nos inspiramos livremente nas histórias que a gente colheu em dois anos de pesquisa. Fomos às escolas, conhecemos professores, conhecemos alunos e, em cima das questões que a gente colheu, buscamos uma dramaturgia que tivesse uma agilidade, porque as coisas que acontecem na escola acontecem em tempos mais longos. Aceleramos os acontecimentos para que a gente pudesse ter ação na série. E recriamos esse universo como em qualquer outro roteiro. Ou, na verdade, fizemos só uma coisa diferente: cada episódio acontece apenas em uma noite. Tudo, o conflito, o auge do conflito, a solução do episódio. Isso cria ação, agilidade. E fizemos praticamente toda a locação numa escola, uma escola de verdade que havia sido abandonada e foi reformada pela Globo.
As séries Rita (dinamarquesa) e Merlí (espanhola) fizeram grande sucesso mundial trazendo professores pouco afeitos às regras institucionais. Vocês de alguma maneira dialogam com essa vertente?
Nos inspiramos mais em documentários brasileiros para fazer a série. Em Pro dia nascer feliz (João Jardim, 2006), no Nunca me sonharam (Cacau Rhoden, 2017) e também no francês Entre os muros da escola (Entre les murs, França, Laurent Cantet, 2008). Mas se Rita e Merlí são transgressores, se são pessoas que erram tentando acertar com os alunos, então sim. Nós temos a nossa protagonista, Lucélia Helena, que é bem isso mesmo, sem freio. Para salvar um aluno, para não deixá-lo sair da escola, ela não desiste. Ela fala: “o aluno desiste da escola, mas eu não desisto do aluno”. Essa é a frase emblemática dela. E todos os nossos professores erram querendo acertar, mas, enfim, estão ali, são pessoas, são humanos. São excelentes professores, mas nem sempre conseguem vencer no final do dia.
A série trabalha um segmento, a Educação de Jovens Adultos, que tem pouquíssima visibilidade no Brasil. No entanto, cerca de 40% da nossa população adulta é constituída por indivíduos – analfabetos, alfabetizados rudimentares e todos aqueles que não completaram o ensino médio – que deveriam ou poderiam cursar essa modalidade. Você tinha dimensão do tamanho dessa exclusão ou segregação antes da série? Como vê essa questão para o país?
Antes de me aprofundar sobre esse tema, eu não sabia quase nada sobre o ensino noturno. Foi um mergulho muito profundo em que ficamos muito surpresas com o envolvimento que os professores têm. Cansados, exaustos, mas fazendo dupla jornada, assim como seus alunos, e mesmo assim são heróis da resistência. Conhecemos mais ou menos uns 20 professores de escolas diferentes e ficamos encantadas com a paixão, o envolvimento, desses professores, com a força deles. Não conhecemos nenhum professor que pudéssemos falar “não, esse cara não está com vontade de dar aula ou está fazendo nas coxas”. Pelo contrário. Foi uma grata surpresa.
Infelizmente, a gente sabe que se existe a EJA no Brasil é porque o ensino regular não deu certo, afinal as pessoas deveriam ser alfabetizadas quando crianças. Mas a gente não pode negar a situação real, que são 3 milhões de alunos de EJA, pessoas que têm direito à educação. É uma camada muito vulnerável da população e, com a série, tentamos jogar luz sobre isso, e dizer “bom, não deveria ter a EJA porque a educação deveria ser melhor, mas, se não foi, esses brasileiros têm direito à educação”.
Muitas vezes é complicado juntar jovens que acabaram de deixar o ensino regular com pessoas de mais idade e com outro olhar sobre a vida. O que vocês viram sobre isso?
Realmente, vimos essa realidade, de alunos mais jovens com alunos mais velhos, cada um com interesses diferentes, e tratamos desse conflito geracional dentro da série. O que a gente viu é que a EJA é um lugar de reabilitação social, da autoestima. É mais do que um projeto de educação. Os alunos que estavam na EJA eram inseridos quase que como numa família, é uma maneira de resgatar a autoestima, de se sociabilizarem, de se sentirem de alguma maneira dignos dentro desse sistema social que os deixa tão de lado. Existem vários fatores para uma pessoa cursar a EJA, tanto pessoais, como profissionais, de inserção social. É um universo duro, uma realidade dura, mas ao mesmo tempo encantadora. Descobrimos muita gente apaixonada, com vocação, com vontade, com resiliência. Tentamos retratar com a máxima fidelidade o que vimos e pesquisamos durante dois anos.