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Publicado em 8/10/2019
Uma proposta frontalmente oposta àquela que esteve para ser implementada a partir da Resolução 2/2015, retomando “proposições e concepções derrotadas no final do século 20, pós-LDB”. Assim Helena Costa Lopes de Freitas, professora aposentada da Unicamp e membro titular do Conselho Fiscal da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), classifica a terceira versão do parecer sobre as diretrizes curriculares voltadas à formação de professores.
Segundo Helena de Freitas, ex-presidente da Anfope durante cinco biênios (1996-2000, 2004-2008 e 2012-2014), a estruturação de um sistema nacional de educação e de um subsistema nacional de formação e valorização docente constitui uma luta que vem dos anos 1980, época de fundação da entidade.
No seu entender, o documento abre brechas diversas para a ação de organizações sociais e fundações e institutos empresariais, o que retiraria o caráter de educação pública sempre defendido pela Anfope.
Ela também critica um modelo que vincula, em sua visão, a qualidade da educação “a desempenho em avaliações constantes e testes censitários e maior controle sobre o trabalho docente e as escolas, premiando e punindo professores”. No todo, o parecer é visto como um documenta que trilha um caminho de retirada da autonomia docente.
Foi, até o momento a mais ácida crítica entre o pequeno grupo de pesquisadores e formadores ouvidos até agora por Trem das Letras. Antes, o site já havia veiculado a análise dos mesmos pontos feita por Cristina Nogueira, do Instituto Singularidades, e Gabriela Moriconi, da Fundação Carlos Chagas. Mozart Ramos, conselheiro do CNE e relator do parecer, respondeu às observações que já haviam sido publicadas.
Em comparação com a Resolução número 2/2015 do CNE, que avaliação faz do atual documento? Qual(is) o(s principal(is) ponto(s) em que encontrou diferença?
A principal diferença é a concepção que informa uma e outra proposta. Elas não são diferentes, diversas. Estão em polos opostos considerando o que aspiramos para a educação em nosso país e a formação da infância e da juventude, em toda sua diversidade, com um projeto de escola, educação e sociedade que se articulam de forma indissolúvel. A nossa proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais de Formação de Professores, construída no período de 2012 a 2015, traz em seus fundamentos a concepção sócio-histórica de educação e de formação de professores construída nos últimos 40 anos pelo movimento dos educadores, em particular pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), na perspectiva de consolidar uma política nacional de formação e valorização dos profissionais da educação de caráter emancipador, articulada a um projeto de sociedade, de país soberano, justo e que supere a desigualdade a discriminação e a miséria própria do capitalismo. Por essa razão, esta política deve contemplar não apenas a formação inicial e continuada, mas as condições de trabalho, salários e carreira de todos os professores. A concepção do CNE, que retoma proposições e concepções derrotadas no final do século 20, pós-LDB, e foca em sua análise exclusivamente a formação inicial, por compreender que “entre os fatores que podem ser controlados pela política educacional, o professor é o que tem maior peso na determinação do desempenho dos alunos”. Com esse ponto de partida, recorre a modelos implementados em outros países, como Austrália e Chile (desde a época da ditadura), que implementaram políticas educacionais neoliberais que vinculam a “qualidade da educação” a desempenho em avaliações constantes e testes censitários e maior controle sobre o trabalho docente e as escolas, premiando e punindo professores – que podem permanecer ou sair da carreira – conforme o desempenho nos testes, implementando políticas meritocráticas que excluem sujeitos ao invés de propiciar as condições para seu aprimoramento e o de toda a educação básica. Com isso, abrem ainda mais as portas para a entrada de Organizações Sociais e fundações educacionais na gestão da educação e da escola pública, como já vem acontecendo em vários estados. Essa política tem se mostrado tão perversa e a tal ponto excludente que hoje o Chile é o país de maior segregação educacional do mundo. Inadmissível e criminosa a decisão de seguir, em nosso país, o mesmo caminho. Nosso país vinha avançando de forma lenta, mas persistente, constante, na direção de termos um sistema nacional de educação e nele, um subsistema nacional de formação e valorização, com políticas estruturantes no entendimento de considerarmos a educação pública como um bem público. É isto que está em risco com estas proposições do Parecer do CNE.
Esta 3ª versão prevê que ¼ do curso (800 horas de 3.200) seja composto de estágios formativos, de prática. Em relação à realidade atual, o que é preciso fazer para que isso efetivamente ocorra? Onde está o maior desafio para tornar isso viável: na gestão da rede, nas escolas, nos cursos de formação?
A destinação de 800 horas para práticas e estágios não é nova. A Resolução CNE/CP 2, de 19 fevereiro de 2002 já estabeleceu 400 hs de práticas e 400 hs de estágios. A diferença é que o CNE estabelece alternativas, como residência docente, práticas clínicas, seja o que for que queiram dizer com isso, na educação básica. Qual é o grande problema que temos no campo da formação? É que a maioria dos cursos de licenciatura é desenvolvida por instituições privadas, grande parte apenas faculdades isoladas ou integradas, em cursos noturnos e a distância. Professores horistas, sem carreira, portanto sem pesquisa, sem dedicação exclusiva a licenciaturas. O movimento pela formação sempre defendeu que a formação se desenvolva em universidades, mas em 2017, a lei da reforma do ensino médio retirou esta exigência, escancarando ainda mais a abertura do “mercado educacional” para as IES privadas e outras instituições corporativas ou fundações que se credenciem como instituições formadoras. Veja o que propõe o Programa Teach for All em nosso país, formando bacharéis que queiram ser professores em curto espaço de tempo, sem ser instituição superior. Além disso, a Portaria Ministerial 1.428 de 2018 ampliou o percentual de horas a distância a serem desenvolvidas em todos os cursos de graduação – com exceção apenas dos cursos das áreas de saúde e engenharia – para até 40% da carga horaria total do curso. Porque não incluíram a educação?
No item III dos princípios de formação curricular para os cursos de formação, ressalta-se “O direito de aprender dos estudantes ingressantes, manifestado na necessidade de recuperar conteúdos e habilidades que não foram constituídas na Educação Básica, e que são indispensáveis para o exercício profissional da docência; ”
Muitas instituições têm feito esforços para isso, mas o quanto tem conseguido preencher dessas lacunas formativas?
Esse é um problema que acontece em todas as áreas, não apenas nas licenciaturas. Mas, as licenciaturas, como compõe o campo educacional, acabam trazendo para a organização curricular a desvalorização da área e dos profissionais. Quantos cursos de engenharia ou medicina, por exemplo, áreas nobres, têm apenas 3.600 horas e 800 de práticas? Quantos deles são em tempo parcial? Mas, essas questões não são objeto de debate no MEC nem mesmo no CNE. Já consideram um ganho as 2.800 horas nas licenciaturas, estabelecidas em 2001. Este não é um debate menor. Ele é crucial para a valorização da profissão do magistério. Países como Finlândia e Cuba, por exemplo, não apenas têm uma carga horária maior, são desenvolvidos em um tempo maior de anos, em tempo integral porque a profissão é valorizada. Na Finlândia, não há avaliação em larga escala e não há currículos padronizados, e os professores têm autonomia para desenvolver seu trabalho e o fazem sem os controles todos que o CNE pretende impor. No Brasil, a proposta é padronizar tudo, desde currículo até o material didático, plataformas de aprendizagem, avaliação, certificação, retirando do professor sua autonomia, o que de mais caro lhe pertence: a direção, a determinação sobre seu trabalho educativo, pedagógico com as crianças e jovens, de forma solidária, parceira, com o coletivo da escola. As novas determinações desestruturam essas possibilidades, embora tenha todo um palavreado nessa direção, mas que não se sustenta quando olhamos para a intenção da totalidade das propostas.
Nas conclusões sobre os estudos da formação em outros países, o parecer diz que “a maioria dos países exige horas mínimas presenciais na graduação e na pós-graduação”. Juntando-se a isso a liberdade presente na Lei 9.057/2017 é de se imaginar que os cursos presenciais reduzam as aulas físicas ao mínimo e que os cursos de EAD ganhem mais fôlego ainda?
Bem, creio que respondi esta questão, em parte, na segunda pergunta. O problema é que pelos parâmetros que vêm orientando a política educacional desde 2016, com a BNCC de 2017, a reforma do ensino médio em 2017, com as alterações na LDB – retirando a exigência de formação na universidade, instituindo notório saber para os percursos técnico-profissionais, ampliando a carga horária a distância nos cursos, limitando a formação de professores às competências e habilidades propostas na BNC da Formação, que por sua vez devem obedecer e estar alinhadas à BNCC, toda a articulação entre CNE, Consed e Undime, vem se dando nessa direção, de estreitar as exigências da formação inicial que passam a ser determinadas unicamente pelo que estabelecem essas novas regulações. Temos certeza de que as IES, principalmente as públicas, que vêm implementando as DCNs de 2015 na perspectiva de aprimoramento constante da formação, não aceitarão essas imposições de uma “reforma às avessas”, retrocedendo 20 anos para recuperar propostas derrotadas aqui e em outros países, que fizeram outras opções para a educação de seu povo. Ainda mais com a perspectiva de um Future-se, os tempos presentes exigem resistência e proposições sintonizadas com as aspirações e concepções socialmente mais elevadas e comprometidas com a formação plena, omnilateral de todos.
Por fim, se lhe coubesse fazer apenas uma alteração no parecer, qual seria?
Uma única: propor ao CNE retirá-lo de pauta, engavetá-lo, e dar continuidade à implementação das DCNs de 2015, para termos uma política de formação de professores e profissionais da educação de caráter elevado.